Pérola

"Nós entendemos que Israel tem o direito de se defender pois nesses últimos anos o Hamas lançou diversos foguetes na região"
Barack Obama

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

40 anos de Woodstock

Comemoramos os 40 anos de Woodstock como um texto do Wilson H. da Silva.

Woodstock em contexto
Foi num 15 de agosto há 40 anos, que teve início um dos mais míticos shows da história da música: o Festival de Woodstock. Aliás, o que ocorreu na área rural de Bethel, nos arredores de Nova York, foi muito mais que um show. Foi a celebração de uma época, a trilha sonora de anos marcados pelo inconformismo, pela rebelião e pela busca, muitas vezes literalmente alucinada, por uma nova forma de ver e viver o mundo.

• O caminho para Woodstock foi sedimentado por eventos e tribos que surgiram na situação aberta depois da Segunda Guerra Mundial. A derrota do nazismo, o deslocamento de milhões de pessoas, a rejeição à ordem que levou o mundo ao conflito (apenas para citar alguns elementos) fizeram com que os anos 1950, em termos sócioculturais, fossem marcados pelo embate de projetos.

De um lado, estavam os conservadores, tentando desesperadamente resgatar a ordem perdida. Do outro, uma infinidade de questionamentos tomavam forma ora em rebeliões e revoluções que sacudiam o mundo, ora no surgimento crescente de novas formas de ver, interpretar e representar o mundo.

No campo cultural, o rock n’roll, a poesia beatnik de gente como Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs e o movimento hippie (ou Flower Power) foram algumas das formas tomadas por esta rebelião. Já no início dos anos 1960, todas estas tribos e tendências se cruzavam pelas rotas da contracultura.

Um exemplo pitoresco aconteceu no início da década. O alucinado praticamente marginal e beatnik Neal Cassidy, no qual foi inspirado o personagem Dean Moriarty, protagonista de On the road (Jack Kerouac), servia como motorista de um ônibus que excursionava pelo país, conduzindo bandas como o Jefferson Airplane, e ficou famoso por transportar quantidades industriais de ácido lisérgico (LSD), que eram gratuitamente distribuídas pelas cidades pelas quais a turnê passava.

No cenário político, além dos movimentos já citados, a Revolução Cubana, a luta pela independência na África e, já no final da década de 1960, a intensificação das mobilizações contra a Guerra do Vietnã (e, particularmente nos Estados Unidos, ao governo de Richard Nixon) serviam de combustível para uma permanente e crescente a insatisfação.

Um sentimento que, no verão de 1969, havia sido potencializado por uma série de eventos bastante recentes, como o assassinato de Martin Luther King, que ainda provocava furiosos protestos por toda parte, o verdadeiro campo de batalha em que havia se transformado a Convenção Nacional dos Democratas e a radicalização crescente dos movimentos sociais em geral.

Inevitavelmente, as duas pontas destes processos se influenciavam mutuamente. Assim, formas de protestos utilizadas pelos movimentos sociais ganhavam novas formas nos palcos da cultura. Foi assim que a prática do sit-in (“sentar e ocupar”), um tipo de manifestação que consistia em invadir locais (de prédios públicos a bases militares) e permanecer sentado até a retirada pela polícia, transformou-se nos human be-in (“ocupações humanas”): a invasão de locais públicos, preferencialmente parques, que eram transformados em palco para exibição gratuita e espontânea de shows e todo tipo de atividade artística.

Um dos locais mais conhecidos para esta prática foi o Central Park de Nova York, como foi mostrado por uma das peças mais famosas da época, o musical Hair, transformado num filme genial por Milos Forman, em 1979. Do outro lado dos EUA, em San Francisco, a “Meca” do movimento contracultural, gigantescos human be-intomavam as ruas como Haigh-Ashbury, o centro nervoso do movimento hippie, e o parque da famosa ponte Golden Gate, promovendo agitados encontros entre figuraças como o poeta beatnik homossexual Allen Ginsberg (autor de poemas como “Uivo” e “Kaddish”) e o militante antiguerra Jerry Rubin, embalados por bandas como o Grateful Dead.

Entre o final dos anos 1950 e os anos 60, a simpatia e o ativismo de várias bandas musicais engrossaram este caldo, através de uma infinidade de festivais, dentro e fora dos EUA, como o Monterey Pop Festival (San Francisco, 1967) e o Festival da Ilha Wight, (Inglaterra, 1969).


WILSON H. SILVA
da redação do Opinião Socialista e membro da
Secretaria Nacional de Negros e Negras dos PSTU

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Filosofia

O mundo me condena,
e ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome
Mas a filosofia hoje me auxilia
A viver indiferente assim
Nesta prontidão sem fim
Vou fingindo que sou rico
Pra ninguém zombar de mim
Não me incomodo que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo
Quanto a você da aristocracia
Que tem dinheiro, mas não compra alegria
Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente
Que cultiva hipocrisia

Noel Rosa

sábado, 9 de maio de 2009

Acabaram as férias

Bom pessoal, já há algum tempo que as coisas por aqui não são atualizadas, peço desculpas aos que por aqui passaram nesse tempo,mas estava meio sem saco para o blog nas últimas semanas.

Enfim, cá estou para voltar a atualizar isto, com mais poemas e novos textos sempre que possível

quase nada mudou nos tempos em que estive fora:

1. a crise se aprofunda cada vez mais, e os governos dizem que o pior já passou oO

2. O governo Lula continua enganando todo mundo, e a última éa do ENEN como vestibular... mais uma espinha que quer enfiar guela abaixo das universidades brasileiras.

3. O socialismo continua sendo a unica solução aos problemas que enfrentamos na atualidade.

Bom por enquanto é isso,

"boa noite e até a amanhã" (Fátima Bernades e Willian Bonner) :P

segunda-feira, 9 de março de 2009

Diante do mar

Oh, mar, enorme mar, coração feroz
de ritmo desigual, coração mau,
eu sou mais tenra que esse pobre pau
que, prisioneiro, apodrece nas tuas vagas.

Oh, mar, dá-me a tua cólera tremenda,
eu passei a vida a perdoar,
porque entendia, mar, eu me fui dando:
"Piedade, piedade para o que mais ofenda".

Vulgaridade, vulgaridade que me acossa.
Ah, compraram-me a cidade e o homem.
Faz-me ter a tua cólera sem nome:
já me cansa esta missão de rosa.

Vês o vulgar? Esse vulgar faz-me pena,
falta-me o ar e onde falta fico.
Quem me dera não compreender, mas não posso:
é a vulgaridade que me envenena.

Empobreci porque entender aflige,
empobreci porque entender sufoca,
abençoada seja a força da rocha!
Eu tenho o coração como a espuma.

Mar, eu sonhava ser como tu és,
além nas tardes em que a minha vida
sob as horas cálidas se abria...
Ah, eu sonhava ser como tu és.

Olha para mim, aqui, pequena, miserável,
com toda a dor que me vence, com o sonho todos;
mar, dá-me, dá-me o inefável empenho
de tornar-me soberba, inacessível.

Dá-me o teu sal, o teu iodo, a tua ferocidade,
Ar do mar!... Oh, tempestade! Oh, enfado!
Pobre de mim, sou um recife
E morro, mar, sucumbo na minha pobreza.

E a minha alma é como o mar, é isso,
ah, a cidade apodrece-a engana-a;
pequena vida que dor provoca,
quem me dera libertar-me do seu peso!

Que voe o meu empenho, que voe a minha esperança...
A minha vida deve ter sido horrível,
deve ter sido uma artéria incontível
e é apenas cicatriz que sempre dói.


Alfonsina Storni
Tradução de José Agostinho Baptista

domingo, 8 de março de 2009

O Dia da Mulher

Nesse dia fazemos uma homenagem à mulheres, com um texto da Revolucionária Russa, Alexandra Kollontai.

O dia Da Mulher

O quê é o dia da Mulher? É realmente necessário? Será que é umha concessom às mulheres da classe burguesa, às feministas e sufragistas? Será que é nocivo para a unidade do movimento operário? Estas questons ainda se escuitam na Rússia, embora já nom no estrangeiro. A vida mesma deu umha resposta clara e eloqüente a tais perguntas.

O Dia da Mulher é um elo na longa e sólida cadeia da mulher no movimento operário. O exército organizado de mulheres trabalhadoras cresce cada dia. Há vinte anos, as organizaçons operárias nom tinham mais do que grupos dispersos de mulheres nas bases dos partidos operários... Agora os sindicatos ingleses tenhem mais de 292.000 mulheres sindicadas; na Alemanha som à roda de 200.000 sindicadas e 150.000 no partido operário, na Áustria há 47.000 nos sindicatos e 20.000 no partido. Em toda as parte, em Itália, na Hungria, na Dinamarca, na Suécia, na Noruega e na Suíça, as mulheres da classe operária estám a organizar-se a si próprias. O exército de mulheres socialistas tem perto de um milhom de membros. Umha força poderosa! Umha força com a qual os poderes do mundo devem contar quando se pom sobre a mesa o tema do custo da vida, a segurança da maternidade, o trabalho infantil ou a legislaçom para proteger os trabalhadores.

Houve um tempo em que os homens trabalhadores pensavam que deveriam carregar eles sós sobre os seus ombros o peso da luita contra o capital, pensavam que eles sós deviam enfrentar-se ao "velho mundo", sem o apoio das suas companheiras. Porém, como as mulheres da classe trabalhadora vam entrar nas fileiras de aqueles que vendem o seu trabalho em troca de um salário, forçadas a entrar no mercado laboral por necessidade, porque o seu marido ou pai estava no desemprego, os trabalhadores vam começar a reparar em que deixar atrás as mulheres entre as fileiras dos "nom-conscientes" era danar a sua causa e evitar que avançasse. Que nível de consciência posui umha mulher que senta no fogom, que nom tem direitos na sociedade, no Estado ou na família? Ela nom tem ideias próprias! Todo se fai segum ordena o seu pai ou marido...

O atraso e a falta de direitos sofridos polas mulheres, a sua dependência e indiferença nom som beneficiosos para a classe trabalhadora, e de facto som um mal directo para a luita operária. Mas, como entrará a mulher nesta luita, como acordará?

A social-democracia estrangeira nom vai encontrar soluçom correcta imediatamente. As organizaçons operárias estavam abertas às mulheres, mas só umhas poucas entravam. Por quê? Porque a classe trabalhadora, ao começo, nom vai dar por si que a mulher trabalhadora é o membro mais degradado, tanto legal quanto socialmente, da classe operária, que ela foi espancada, intimidada, encurralada ao longo dos séculos, e que para estimular a sua mente e o seu coraçom necessita umha aproximaçom especial, palavras que ela, como mulher, entenda. Os trabalhadores nom se vam dar conta imediatamente de que neste mundo de falta de direitos e de exploraçom, a mulher está oprimida nom só como trabalhadora, mas também como mae, mulher. Porém, quando membros do partido socialista operário entendêrom isto, figérom sua a luita pola defesa das trabalhadoras como assalariadas, como maes, como mulheres.

Os socialistas em cada país começam a demandar umha protecçom especial para o trabalho das mulheres, seguranças para as maes e os seus filhos, direitos políticos para as mulheres e a defesa dos seus interesses.

Quanto mais claramente o partido operário percebia esta dicotomia mulher/trabalhadora, mais ansiosamente as mulheres se uniam ao partido, mais apreciavam o rol do partido como o seu verdadeiro defensor e mais decididamente sentiam que a classe trabalhadora também luitava polas suas necessidades. As mulheres trabalhadoras, organizadas e conscientes, figérom muitíssimo para elucidar este objectivo. Agora, o peso do trabalho para atrair as trabalhadoras ao movimento socialista reside nas mesmas trabalhadoras. Os partidos em cada país tenhem os seus comités de mulheres, com os seus secretariados e burós para a mulher. Estes comités de mulheres trabalham na ainda grande populaçom de mulheres nom conscientes, levantando a consciência das trabalhadoreas em seu redor. Também examinam as demandas e questons que afectam mais directamente à mulher: protecçom e provisom para as maes grávidas ou com filhos, legislaçom do trabalho feminimo, campanha contra a prostituiçom e o trabalho infantil, a demanda de direitos políticos para as mulheres, a campanha contra a suba do custo da vida...

Assim, como membros do partido, as mulheres trabalhadoras luitam pola causa comum da classe, enquanto ao mesmo tempo delineam e ponhem em questom aquelas necessidades e as suas demandas que lhes dim respeito mais directamente como mulheres, como donas de casa e como maes. O partido apoia estas demandas e luita por elas. Estas necessidades das mulheres trabalhadoras som parte da causa dos trabalhadores como classe.

No dia da mulher as mulheres organizadas manifestam-se contra a sua falta de direitos. Mas alguns dim, por quê esta separaçom das luitas das mulheres? Por quê há um dia da mulher, panfletos especiais para trabalhadoras, conferências e comício? Nom é, enfim, umha concessom às feministas e sufragistas burguesas? Só aqueles que nom compreendem a diferença radical entre o movimento das mulheres socialistas e as sufragistas burguesas podem pensar desta maneira.

Qual o objectivo das feministas burguesas? Conseguir os mesmos avanços, o mesmo poder, os mesmo direitos na sociedade capitalista que possuem aogra os seus maridos, pais e irmaos. Qual o objectivo das operárias socialistas? Abolir todo o tipo de privilégios que derivem do nascimento ou da riqueza. À mulher operária é-lhe indiferente se o seu patrom é um homem ou umha mulher.

As feministas burguesas demandam a igualdade de direitos sempre e em qualquer lugar. As mulheres trabalhadoras respostam: demandamos direitos para todos os cidadaos, homens e mulheres, mas nós nom só somos mulheres e trabalhadoras, também somos maes. E como maes, como mulheres que teremos filhos no futuro, demandamos umha atençom especial do governo, protecçom especial do Estado e da sociedade.

As feministas burguesas estám luitando para conseguir direitos políticos: também aqui os nossos caminhos se separam. Para as mulheres burguesas, os direitos políticos som simplesmente um meio para conseguir os seus objectivos mais comodamente e com mais segurança neste mundo baseado na exploraçom dos trabalhadores. Para as mulheres operárias, os direitos políticos som um passo no caminho empedrado e difícil que leva ao desejado reino do trabalho.

Os caminhos seguidos polas mulheres trabalhadoras e as sufragistas burguesas separárom-se há tempo. Há umha grande diferença entre os seus objectivos. Há também umha grande contradiçom entre os interesses de umha mulher operária e as donas proprietárias, entre a criada e a senhora... portanto, os trabalhadores nom devem temer que haja um dia separado e assinalado como o Dia da Mulher, nem que haja conferências especiais e panfletos ou imprensa especial para as mulheres.

Cada distinçom especial para as mulheres no trabalho de umha organizaçom operária é umha forma de elevar a consciência das trabalhadoras e aproximá-las das fileiras de aqueles que estám a luitar por um futuro melhor. O Dia da Mulher e o lento, meticuloso trabalho feito para elevar a auto-consciência da mulher trabalhadora estám servindo à causa, nom da divisom, mas da uniom da classe trabalhadora.

Deixa um sentimento alegra de servir à causa comum da classe trabalhadora e de luita simultaneamente pola emancipaçom feminina inspire os trabalhadores a unirem-se à celebraçom do Dia da Mulher.

Alexandra kollontai, 1913

Fonte: Marxists.org

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Dor


Quisera esta tarde divina de outubro
passear pela beira longínqua do mar;
Que a areia de ouro, e as águas verdes,
e os céus puros me vissem passar.

Ser alta, soberba, perfeita, quisera,
como uma romana, para concordar
com as grandes ondas, e as rocas mortas
e as largas praias que apertem o mar.

Com o passo lento, e os olhos frios
e a boca muda, deixar-me levar;
ver como se rompem as ondas azuis,
contra os granitos e não pestanejar;
ver como as aves de rapina se comem
os peixes pequenos e não despertar;
pensar que puderam as frágeis barcas
Afundar-se nas águas e não suspirar;
Ver que se adianta a garganta ao ar,
O homem mais belo não desejar amar…

Perder o olhar, distraidamente,
perde-lo e que nunca o volte a encontrar:
E figura erguida entre céu e praia
sentir-me o esquecimento perene do mar.

Alfonsina Storni

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Paulo da Portela e o samba nos trilhos

• Em 31 de janeiro de 1949, o Rio de Janeiro parou. A poucas semanas do carnaval, a cidade perdia Paulo da Portela, com 47 anos, vítima de um ataque cardíaco. O comércio do bairro de Madureira fechou em luto e cerca de 15 mil pessoas foram se despedir do poeta, caminhando de sua casa, no subúrbio de Oswaldo Cruz, até o cemitério de Irajá.

Paulo Benjamin de Oliveira era então um dos mais conhecidos compositores, senão o principal. O número de pessoas em seu enterro só foi menor que em 1936, ao ser eleito “cidadão momo”. O título fez 100 mil pessoas se reunirem no centro do Rio. Um número impressionante, ainda mais para uma cidade que tinha 1,5 milhão de habitantes. A multidão fez o pesquisador Sérgio Cabral enxergar em Paulo “um dos maiores líderes populares que o Rio de Janeiro já conheceu”.

Paulo foi testemunha e personagem de grandes transformações no samba em anos que moldaram a folia. Ele recebeu seu sobrenome antes da escola. Ele e seus companheiros passaram a se reunir sob uma árvore, no número 461 da Estrada da Portela. A música atraiu e a roda virou bloco. Paulo precisava de um sobrenome. Virou Paulo da Portela.

Do bloco até o GRES Portela, foi pouco mais de uma década. Nesses anos, se reuniram em todo tipo de local, até dentro de um vagão de trem.

Nos trilhos
O trem partia da Central do Brasil às 18h04 para o subúrbio. O grupo estava sempre lá, no mesmo vagão. Disciplina que não combinava com a imagem do sambista que se tinha.

O negro alto, esguio e bonito comportava-se impecavelmente e era chamado de “professor”. Contemporâneo de Monarco, Cartola e Heitor dos Prazeres, Paulo acreditava na profissionalização de sambistas. Vestia terno, gravata e chapéu, no que era seguido por seus companheiros.

Wilson Moreira, numa entrevista, recordou de quando chegou à Portela. “Mestre Natal me ensinou que eu sempre fizesse o samba com elegância, como Paulo fazia. Esse é o seu maior legado”, afirma.

O pesquisador José Ramos Tinhorão, em depoimento ao documentário Paulo da Portela – Seu nome não caiu no esquecimento, destaca como era o carnaval de rua.

“Como a escola representava a sua comunidade, havia muito bairrismo. Ficaram famosas as brigas de integrantes na Praça Onze. E o Paulo da Portela era um diplomata. Primeiro, ele era muito maneiroso, se vestia bem, era bem falante. Ele não tinha esse negócio. Aparecia na Mangueira, era bem recebido. Outro ficaria com receio de ir”, afirma.

De origem proletária e de baixa escolaridade, Paulo era bem articulado e fazia discursos de improviso. Tornou-se uma espécie de porta-voz, sendo escutado por jornalistas, políticos e governantes.

Combatia o preconceito contra o povo negro. Sergio Cabral lembra que “nos primeiros desfiles, a polícia ficava na Praça Onze, impedindo que os foliões que terminavam de desfilar seguissem para o Centro. Eles eram obrigados a voltar, ou para o subúrbio ou para as favelas próximas”.

Paulo conseguiu ser escutado em momentos críticos. Como em 1945, após uma morte causada por briga num desfile. Aos jornais, ele disparou: “Os ladrões, os pilantras, os verdadeiros assassinos não estão na escola de samba. Estão na Avenida Rio Branco, de terno, colarinho e gravata”. A avenida reunia o poder financeiro e político do país e o discurso revela a visão política do sambista, que chegou a participar de comícios do PCB e compor para Luiz Carlos Prestes.

Abram alas
Em 1931, a Portela desfila como “Vai Como Pode”. Só em 1935, quando o desfile tornou-se oficial, a escola adotou seu nome. Paulo dirigiu os primeiros desfiles, com mudanças. Em 1939, trouxe os componentes com fantasias voltadas ao enredo, algo óbvio hoje em dia.

O pioneirismo surge com alegorias, alas e comissões de frente e na presença feminina, com duas vozes no samba. Venceu diversos carnavais, até mesmo depois que Paulo se desentendeu com a diretoria da escola, indo para a pequena Lira de Ouro.

Até a sua morte, em 1949, participa de programas de rádio, grava e segue compondo. Canta o jeito simples da vida suburbana, o amor e acima de tudo, a escola que seguiu em seu peito. Como nesse verso, de 1941: “Chora, Portela/ Minha Portela querida/ Eu que te fundei/ Serás minha toda vida”.

O sambista e o mito do Zé Carioca
Entre os muitos shows, Paulo da Portela apresentou-se a um grupo de norte-americanos. Walt Disney estava presente e reza a lenda que teria se inspirado em Paulo para criar o brasileiro Zé Carioca. Os personagens – Argentina e México também teriam os seus – faziam parte da política de boa vizinhança dos EUA, na Segunda Guerra.

O mito resume o caminho trilhado pelo sambista. Paulo atuou como um mediador, procurando aproximar dois lados de uma cidade, que continua dividida até hoje, por conta da segregação e da desigualdade.

Sua luta para retirar o samba da marginalidade encontrou eco entre governantes e a mídia. O Estado Novo enxergou a possibilidade de afirmar uma identidade nacional. A mídia viu ainda um negócio rentável. Ambos precisavam construir uma nova imagem da festa.

Uma reportagem da época resume o espírito. “Ordem absoluta. Prazer imenso. Constituem essas festas, até, número de turismo dos mais admiráveis e admirados. O governo faz bem. É festa legítima do povo. E só é alegre quem é feliz.”

Paulo da Portela enxergava o talento do povo negro, sua criatividade e apostava na música como caminho para a ascensão e a integração social. Não duvidava do potencial e da qualidade à sua volta. Mas, não só nas roupas, aceitou atender ao gosto da platéia formada pela elite branca e rica, que havia expulsado pobres e negros do centro há poucas décadas, num esforço para “limpar” a capital.

Agora, estes mesmos senhores queriam moldar o samba, como um papagaio preguiçoso, favelado e malandro e, acima de tudo, inofensivo.

A experiência coletiva e o prazer de criar foram sendo abandonados, substituídos pela obrigação e pelas normas do mercado de discos.

É legítima a busca pela aceitação do samba e pela profissionalização de quem faz o carnaval, como compositores, costureiras e o pessoal nos barracões. Mas, em nome dessa busca, a história do carnaval mostra como o mercado e as elites foram alterando a essência da festa.

Transformação vista por Heitor dos Prazeres, em 1957, oito anos após a morte do parceiro Paulo da Portela. Ele falou com amargura dos desfiles, dizendo que ao contrário do tempo em que se desfilava por amor, “hoje tudo é feito só com muito dinheiro”. Uma frase que soa como profecia, se olharmos os desfiles de hoje na Sapucaí. Mas que renova a esperança, quando vemos os milhões de foliões nos blocos de todo o país.

Talvez o que tenha passado despercebido é que esse sistema não permite a verdadeira libertação do povo negro e a plena satisfação de seus talentos. Para os capitalistas, somos todos papagaios.

Gustavo Sixel

Extraído do Portal do PSTU

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Um dever de honra

Rosa Luxemburgo

Não queríamos “anistia” nem perdão para as vítimas políticas do velho poder reacionário. Exigíamos nosso
direito à liberdade, à luta e à revolução para aquela centena de militantes corajosos e leais que definhavam nas penitenciárias e nas prisões por terem lutado, sob a ditadura militar do bando criminoso imperialista, pela liberdade do povo, a paz e o socialismo. Agora estão todos em liberdade. Estamos novamente enfileirados, prontos para o combate. Não foram os Scheidemann e seus cúmplices burgueses, com o príncipe Max (1) à frente, que nos libertaram. Foi a revolução proletária que fez explodir as portas de nossas casamatas.

Contudo,
outra categoria de habitantes infelizes desses edifícios lúgubres foi completamente esquecida. Ninguém pensou até agora nos milhares de figuras pálidas e macilentas que definham anos a fio atrás dos muros de prisões e penitenciárias expiando crimes comuns.

E no entanto são vítimas infelizes da infame ordem social contra a qual a revolução
se dirigiu; são vítimas da guerra imperialista, que levou a miséria e a desgraça aos extremos da mais insuportável tortura; que, ao custo de uma carnificina brutal, desencadeou em naturezas fracas, dotadas de taras hereditárias, os instintos mais vis.

A justiça de classe
burguesa funcionou mais uma vez como uma rede que deixa tranquilamente escapar de suas malhas os tubarões rapaces enquanto as pequenas sardinhas nelas se debatem desamparadas. Os especuladores, que ganharam milhões com a guerra, ficaram na sua maioria impunes ou receberam penas pecuniárias ridículas; os pequenos ladrões e as pequenas ladras são punidos com penas de prisão draconianas.

Passando fome e frio nas celas quase sem aquecimento, psiquicamente abatidos pelo horror dos quatro anos de guerra, esses enjeitados sociais
esperavam misericórdia e alívio.

Mas
esperam em vão. O último dos Hohenzollern, soberano bondoso preocupado em fazer os povos degolarem-se uns aos outros e em distribuir coroas, esqueceu-se dos infelizes. Desde a conquista de Liège não houve durante quatro anos qualquer anistia digna de menção, nem sequer no feriado oficial dos escravos alemães, o “aniversário do Kaiser”.

Agora a revolução proletária preci
sa iluminar com um pequeno raio misericordioso a existência sombria nas prisões e nas penitenciárias, diminuir as sentenças draconianas, abolir o bárbaro sistema disciplinar – correntes, açoites! –, melhorar no que for possível o tratamento e os suprimentos médicos, a alimentação e as condições de trabalho. É uma questão de honra!

O sistema penal exist
ente, profundamente impregnado de um brutal espírito de classe e da barbárie do capitalismo, precisa ser extirpado de vez. É preciso começar imediatamente uma reforma de base do sistema penal. É evidente que uma reforma totalmente nova, no espírito do socialismo, só pode ser estabelecida sobre o fundamento de uma nova ordem econômica e social, pois tanto crimes quanto castigos estão em última instância enraizados nas condições econômicas da sociedade. No entanto, uma medida radical pode ser adotada sem mais: a pena de morte, a maior vergonha do ultra-reacionário código penal alemão, precisa desaparecer imediatamente! Por que hesita o governo dos trabalhadores e soldados? Será que o nobre Beccaria, que há duzentos anos denunciou em todas as línguas civilizadas a infâmia da pena de morte, não existiu para vocês, Ledebour, Barth, Däumig? Vocês não têm tempo, têm pela frente mil preocupações, mil dificuldades, mil tarefas. É verdade. Mas peguem o relógio e olhem quanto tempo leva para abrir a boca e dizer: está abolida a pena de morte! Ou será que entre vocês deveria haver a esse respeito um longo debate com votação? Será que nesse caso vocês também se deixariam enredar num emaranhado de formalidades, considerações de competência, questões de rubricas, carimbos e futricas semelhantes?

Ah, como é alemã esta revolução alemã! Como é prosaica, pedante, sem entusiasmo, sem brilho, sem grandeza. A pena de morte esquecida é somente um pequeno detalhe isolado.
Mas é precisamente nesses pequenos detalhes que se trai de costume o espírito intrínseco do todo!

P
eguemos qualquer livro de história da grande Revolução Francesa, por exemplo, o árido Mignet. É possível ler esse livro sem o coração palpitante e a fronte em brasa? Quem abriu qualquer página ao acaso pode largá-lo antes de ter ouvido, empolgado, sem fôlego, o último acorde desse grandioso acontecimento? É como uma sinfonia de Beethoven, intensamente poderosa, uma tempestade trovejando no órgão dos tempos, grande e soberba, tanto nos erros quanto nos acertos, tanto na vitória quanto na derrota, tanto em seu primeiro grito ingênuo de júbilo quanto em seu último suspiro. E o que acontece agora na Alemanha? A cada passo, pequeno ou grande, sente-se que são sempre os velhos e bem comportados companheiros da defunta social-democracia alemã, para quem os carnês de filiação eram tudo, os homens e o espírito, nada. Não devemos nos esquecer contudo que não se faz história sem grandeza de espírito, sem pathos moral, sem gestos nobres.

Liebknecht e eu, ao deixarmos os hospitaleiros espaços onde vivemos ultimamente – ele
, seus irmãos de penitenciária, de cabeça tosada, eu, minhas pobres queridas ladras e mulheres da rua com quem vivi três anos e meio debaixo do mesmo teto – nós lhes prometemos solenemente, enquanto nos acompanhavam com o olhar triste: não os esqueceremos!

E
xigimos do Comitê Executivo dos conselhos de operários e soldados um abrandamento imediato do destino dos prisioneiros em todos os cárceres da Alemanha!

Exigimos a supressão da pena de morte do código penal alemão!


Durante os quatro anos de
genocídio imperialista o sangue correu em torrentes, em riachos. Agora é preciso guardar respeitosamente cada gota dessa seiva preciosa em recipientes de cristal. A mais violenta atividade revolucionária e a mais generosa humanidade – este é o único e verdadeiro alento do socialismo. Um mundo precisa ser revirado, mas cada lágrima que cai, embora possa ser enxugada, é uma acusação; e aquele que, para realizar algo importante, apressadamente e com brutal descuido esmaga um pobre verme, comete um crime.

Die Rote Fahne (Berlim), nº3, 18 de novembro de 1918.

Tradução: Isabel Loureiro

NOTAS

(1) Em 3 de outubro de 1918 o príncipe Max de Bade foi nomeado chanceler, tendo formado um governo parlamentar com o objetivo de paralisar o movimento revolucionário na Alemanha, salvar as classes dominantes e negociar com a Entente. Faziam parte do governo, entre outros, o líder da bancada do partido do Centro, Adolf Gröber, Friedrich von Payer como representante do Partido do Progresso, Philipp Scheidemann e Gustav Bauer como representantes da social-democracia.

Retirado do Site do Instituto Rosa Luxemburgo Stiftung

Nós, Latino-americanos


Somos todos irmãos
Mas não porque tenhamos
a mesma mãe e o mesmo pai:
temos é o mesmo parceiro que nos trai.

Somos todos irmãos
Não porque dividamos
O mesmo teto e a mesma mesa:
Dividamos a mesma espada
Sobre nossa cabeça.

Somos todos irmãos
Não porque tenhamos
O mesmo berço, o mesmo sobrenome:
Temos um mesmo trajeto
De sanha e fome.

Somos todos irmãos
Não porque seja o mesmo o sangue
Que no corpo levamos:
O que é o mesmo é o modo
Como o derramamos.

Ferreira Gullar

Sobre a Ditadura Revolucionária do Proletariado

“A diferença fundamental entre a Ditadura do Proletariado e a Ditadura das outras classes, da Ditadura dos Latifundiários na Idade Média, da Ditadura da Burguesia em todos os países capitalistas civilizados, reside em que a Ditadura dos Latifundiários e da Burguesia representava a opressão violenta da resistência da maioria esmagadora da população, nomeadamente a opressão dos trabalhadores. Pelo contrário, a Ditadura do Proletariado é a opressão violenta da resistência dos exploradores, i.e. de uma minoria ínfima da população, dos Latifundiários e Capitalistas.Disso resulta que a Ditadura do Proletariado deverá portar, consigo, inegavelmente, não apenas, dito genericamente, uma modificação das formas e das instituições da democracia, mas sim um tal modificação delas que os escravizados pelo capitalismo, as classes trabalhadoras, execerão, efetivamente, a democracia em uma medida jamais vista no mundo antes.Realmente, a forma da Ditadura do Proletariado, que já foi praticamente elaborada, i.e. o Poder Soviético na Rússia, o Sistema de Conselhos na Alemanha, os Comitês de Fábrica e outras instituições soviéticas análogas em outros países, significa e materializa precisamente para as classes trabalhadoras, i.e. para a maioria esmagadora da população, uma grande oportunidade para se servir dos direitos democráticos e liberdades, tal como jamais existiu, mesmo que aproximadamente, nas melhores e mais democráticas repúblicas burguesas(p. 479).”[1]


[1] Cf. LÊNIN, VLADIMIR I. Thesen und Referat über bürgerliche Demokratie und Diktatur des Proletariats 4. März. I Kongreß der Komm. Internationale (Teses e Exposição acerca da Democracia Burguesa e Ditadura do Proletariado de 4 de Março. I Congresso da Internacional Comunista), in : W. I. Lenin Werke, Vol. XXVIII (De Julho de 1918 à Março de 1919), Berlim, 1959, p. 479.



sábado, 7 de fevereiro de 2009

Deusas do cotidiano

O nome dessas mulheres eu não sei, não lembro e nem preciso saber. São nomes comuns em meio a tantos outros espalhados por esse chão duro chamado Brasil.Mas a maioria delas eu conheço, e conheço bem, são donas de um mesmo destino: as miseráveis que roubam remédios para aliviar as angústias dos filhos.É quando a pobreza não é dor, é angústia também.São as ladras de Victor Hugo.

Donas da insustentável leveza do ser, as infantes guerreiras enfrentam a lei da gravidade.

Permanecem de pé ante aos dragões comedores de sonhos que escondem na gravidade da lei. Das trincheiras do ninho enfrentam moinhos de mós afiadas para protegerem a pança dos pequeninos.São as Quixotes de Miguel de Cervantes.Místicas, não raro, estão sempre nuas em sentimentos. Quando precisam, cruas, esmolam com o corpo, e se postam à espera do punhal do prazer que cravam no seu ventre. È quando o prazer humilha.São as habitantes do inferno de Dante.

Rainhas de castelos de madeiras, sustentam os filhos como príncipes, e os protegem da fome, do frio, e da vida dura e cruel que insiste em bater na porta dessas mulheres de panela vazia. Quanto aos reis, também são os mesmos: os covardes dos vinhos da ira.Mágicas, esses anjos se transformam em rochas, quando a vida pede grão de areia. Em flores quando rastejam e espinhos quando protegem. Essas mulheres são aquelas que limpam tapetes, mas não admitem serem pisadas. São domésticas, mas não aceitam serem domesticadas.Sim, são as deusas do dia a dia.

Sérgio Vaz

Linguagem e medo global

Na era vitoriana, as calças não podiam ser mencionadas na presença de uma senhorita.
Hoje, não fica bem dizer certas coisas na presença da opinião pública.

O capitalismo ostenta o nome artístico de economia de mercado, o imperialismo chama-se globalização.

As vítimas do imperialismo chamam-se países em vias de desenvolvimento, o que é como chamar de crianças aos anões.

O oportunismo chama-se pragmatismo, a traição chama-se realismo.

Os pobres chamam-se carentes, ou carenciados, ou pessoas de escassos recursos.

A expulsão das crianças pobres do sistema educativo é conhecida sob o nome de deserção escolar.

O direito do patrão a despedir o operário sem indenização nem explicação chama-se flexibilização do mercado laboral

A linguagem oficial reconhece os direitos das mulheres entre os direitos das minorias, como se a metade masculina da humanidade fosse a maioria.

Ao invés de ditadura militar, diz-se processo.

As torturas chamam-se pressões ilegais, ou também pressões físicas e psicológicas.

Quando os ladrões são de boa família, não são ladrões e sim cleptómanos.

O saqueio dos fundos públicos pelos políticos corruptos responde pelo nome de enriquecimento ilícito.

Chamam-se acidentes os crimes cometidos pelos automóveis.

Para dizer cegos, diz-se não visuais, um negro é um homem de cor.

Onde se diz longa e penosa enfermidade deve-se ler cancro ou SIDA.

Doença repentina significa enfarte, nunca se diz morte e sim desaparecimento físico.

Tão pouco são mortos os seres humanos aniquilados nas operações militares.

Os mortos em batalha são baixas, e as de civis que a acompanham são danos colaterais.

Em 1995, aquando das explosões nucleares da França no Pacífico Sul, o embaixador francês na Nova Zelândia declarou: "Não me agrada essa palavra bomba, não são bombas. São artefactos que explodem".

Chamam-se "Conviver" alguns dos bandos que assassinam pessoas na Colômbia, à sombra da protecção militar.

Dignidade era o nome de um dos campos de concentração da ditadura chilena e Liberdade a maior prisão da ditadura uruguaia.

Chama-se Paz e Justiça o grupo paramilitar que, em 1997, metralhou pelas costas quarenta e cinco camponeses, quase todos mulheres e crianças, no momento em que rezavam numa igreja da aldeia de Acteal, em Chiapas.


Eduardo Galeano

Poema Brasileiro




No Piauí de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças
que nascem
78 morrem
antes de completar
8 anos de idade

antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade


(1962)Ferreira Gullar

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Persépolis: autobiografia de uma lutadora no Irã

Em branco e preto e com traços bastante expressivos e simples, Persépolis é uma das Histórias em quadrinhos mais importantes das últimas décadas. Conta as memórias de Marjane Satrapi – ou Marji – que tinha apenas 10 anos quando ocorreu a revolução iraniana de 1979 que derrubou o Xá Mohamed Reza Pahlevi.

Nesta revolução, houve uma participação popular muito grande, com a formação dos shoras (conselhos populares similares aos sovietes da Revolução Russa), dos quais faziam parte setores expressivos do movimento operário, como os petroleiros. O Xá era uma marionete do imperialismo norte-americano e as pessoas lutavam para, com a queda de Pahlevi, conquistar maior democracia.

Os pais de Marji eram parte de uma classe média intelectualizada socialista. Todos os dias, iam às manifestações contrárias ao regime. No início, Marji não entendia o motivo que levava seus pais a fazerem isto. Tampouco entendia por que tinha vergonha de andar no Cadillac de seu pai.

No entanto, pouco a pouco, entre conversas imaginárias com Deus e Karl Marx, entre participações escondidas em manifestações e a leitura de livros e quadrinhos, acabou compreendendo que a razão de sua vergonha e da revolução era a mesma: “a diferença entre as classes sociais”.

Como em todo o trabalho de Marjane, suas memórias familiares se fundem com a história e a situação política do Irã. Conforme escrito na introdução dos quadrinhos, Marjane herdou toda a história da região da antiga Pérsia e foi a partir desse material que produziu o “primeiro álbum de história em quadrinhos iraniano”.

A revolução foi vitoriosa. Marjane conta que no dia em que o Xá foi embora, “o país fez a maior festa de sua história”. Comemoravam a conquista efetiva de sua liberdade. Comemoravam o retorno dos milhares de presos políticos às suas casas.

Pela primeira vez em 30 anos, a avó de Marji pôde, enfim, reunir seus seis filhos. Entre eles, estava o tio Anouche, parte da esquerda socialista iraniana que foi massacrada pela direção teocrática depois da revolução.



A queda de Pahlevi significou uma terrível derrota para os Estados Unidos. O imperialismo buscava o controle dos ricos poços de petróleo do Irã e, evidentemente, não abandonaria uma de suas peças-chave na região. Armaram o Iraque para que declarasse guerra ao Irã. Como disse o pai de Marji, “a verdade é que, enquanto existir petróleo no Oriente Médio, não vamos saber o que é paz...”.

A hierarquia religiosa aproveitou a guerra contra o Iraque para desmobilizar as massas, atacando os comitês operários, perseguindo o movimento sindical independente e massacrando a esquerda socialista. Com violento esforço reacionário, acabaram com a revolução estabelecendo um Estado burguês ditatorial de ideologia religiosa.

Marji mostra toda a sua alegria e exaltação na queda do Xá e sua confusão com a ascensão dos cléricos. Após ter estudado numa escola laica e bilíngüe, Marji foi obrigada a freqüentar um colégio religioso, a usar o véu e a se submeter a uma série de novas proibições particulares às mulheres. Bastante influenciada pelos questionamentos feministas de sua avó e pela experiência sofrida com o choque cultural dos tempos nos quais viveu na Áustria, Marjane não entendia o motivo daquela peça obrigatória de vestuário.



Tampouco via sentido nas desigualdades cada vez mais abismais entre mulheres e homens de seu país e entre a hierarquia clerical e os trabalhadores e jovens. Estes últimos eram mandados em atacado à guerra em troca de uma pretensa garantia de entrada no paraíso. Em seus oito anos, a guerra entre Irã e Iraque produziu mais de um milhão de mortos.

Em 2007, os quadrinhos foram transformados em animação. No dia de sua exibição oficial, o governo iraniano divulgou uma nota de repúdio condenando a forma como o país é representado na obra de Marjane Satrapi.

Transitando entre o humor e o drama, ao contrário das acusações do governo iraniano, Persépolis não condena o Irã, tampouco idealiza o Ocidente. Em tom confessional, os quadrinhos projetam o aspecto humano das convulsões políticas e sociais que resultaram da deposição revolucionária de uma monarquia ditatorial pró-imperialista, da disputa dos destinos da revolução entre os cléricos e a esquerda socialista, e a formação de uma república islâmica capitalista e repressiva. Um retrato poético, ousado e único.

Nadia Khalil, da redação do jornal Al Baian
Fonte: Portal do PSTU

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Salário

Ó que lance extraordinário:
aumentou o meu salário
e o custo de vida, vário,
muito acima do ordinário,
por milagre monetário
deu um salto planetário.

Não entendo o noticiário.
Sou um simples operário,
escravo de ponto e horário,
sou caxias voluntário
de rendimento precário,
nível de vida sumário,
para não dizer primário,
e cerzido vestuário.
Não sou nada perdulário,
muito menos salafrário,
é limpo meu prontuário,
jamais avancei no Erário,
não festejo aniversário
e em meu sufoco diário
de emudecido canário,
navegante solitário,
sob o peso tributário,
me falta vocabulário
para um triste comentário.
Mas que lance extraordinário:
com o aumento de salário,
aumentou o meu calvário!

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Fórum Social Mundial promove ‘limpeza’ em periferia

do portal do PSTU

• O Fórum Social Mundial (FSM) continua sendo um espaço que aglutina centenas de organizações sociais e milhares de ativistas de diversos países e ideologias. O FSM sempre foi dirigido e organizado pelo PT e pela juventude do PCdoB (UJS). Desta vez, é a própria governadora Ana Júlia (PT), quem investirá pesado no evento.

As obras em volta do acampamento da juventude já começaram. O acampamento será em duas universidades: Universidade Federal do Pará (UFPA) e Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA). Elas são cercadas pelo Rio Guamá e por duas grandes periferias, Terra-Firme e Guamá. Por esse motivo, uma fileira de 110 casas, inicialmente, foram compradas e derrubadas para alargar a rua em torno do acampamento. Em seguida, porém, derrubaram muito mais delas.

O governo está comprando as casas por R$ 3 mil, R$ 1.800 e até por R$ 500. Além de valores irrisórios, os moradores não tem direito a um alojamento provisório nem prorrogação dos prazos. Isso os coloca numa situação a caminho da indigência. Após a assinatura do morador, ele espera por um dia improvável em que a migalha cairá em sua conta. Após isso, lhe restam apenas cinco dias para sair. Caso não saia, as autoridades competentes o despejam a força.

Os que se recusam a assinar, recebem intimações judiciais e visitas de advogados com policiais em tom ameaçador. Os moradores disseram que as mulheres são as mais pressionadas. Segundo eles, o governo alega que se trata de uma área de invasão e diz que as pessoas não tem direito a nada. É isso que o governo chamado de popular e democrático do PT pensa sobre as ocupações urbanas e populares?

As primeiras casas derrubadas foram compradas por preços bem melhores. Aparentemente, o objetivo do governo era isolar as casas restantes e forçar os moradores a aceitarem quantias irrisórias. Outra tática importante do governo foi a de começar as demolições durante as férias da UFPA para evitar prováveis atritos com o movimento estudantil. No ano passado, os ativistas ocuparam a reitoria daquela universidade e, certamente, apoiariam os habitantes.

Muitos moradores já perderam seus empregos devido aos abalos psicológicos. O clima de depressão é geral. Ficamos sabendo de uma senhora de 83 anos, conhecida como a “mãezona” da vizinhança, que foi despejada. Ela vivia da solidariedade da comunidade. O governo garantiu que seria pago um aluguel a ela até que encontrasse outra casa morar. A última notícia que tivemos foi de que está morando de favor num lugar distante. O dinheiro do aluguel nunca chegou.

A Organização do FSM alega que não tem nada que ver com o problema e que são obras do governo não-ligadas ao Fórum. Já é bastante contraditório que digam isso de um governo que eles mesmos apóiam. Fomos conferir com o órgão responsável pela obra, a COHAB, e ouvimos que “as obras não tem a ver com o Fórum Social Mundial mas, temos ordens para aprontar essa primeira etapa de remanejamento desse pessoal até janeiro, para que seja estreado durante o evento”.

Agora fica mais claro porque tamanha truculência e pressa nesse projeto. Tudo em nome de “um outro mundo possível”.

Dinorah da Silva e Érica Correa, de Belém (PA)

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O teu riso

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu sorriso.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sabe ao céu a procurar-me
a abre-me todas
as portas da vida

À beira mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma...

Ria da noite,
do dia, da lua,
ria das ruas
tortas da ilha,
ria deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

Pablo Neruda

domingo, 25 de janeiro de 2009

O Açúcar

O branco açúcar que adoçará meu café
Nesta manhã de Ipanema
Não foi produzido por mim
Nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
E afável ao paladar
Como beijo de moça, água
Na pele, flor
Que se dissolve na boca. Mas este açúcar
Não foi feito por mim.

Este açúcar veio
Da mercearia da esquina e
Tampouco o fez o Oliveira,
Dono da mercearia.
Este açúcar veio
De uma usina de açúcar em Pernambuco
Ou no Estado do Rio
E tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
E veio dos canaviais extensos
Que não nascem por acaso
No regaço do vale.

Em lugares distantes,
Onde não há hospital,
Nem escola, homens que não sabem ler e morrem de fome
Aos 27 anos
Plantaram e colheram a cana
Que viraria açúcar.
Em usinas escuras, homens de vida amarga
E dura
Produziram este açúcar
Branco e puro
Com que adoço meu café esta manhã
Em Ipanema

Ferreira Gullar

sábado, 24 de janeiro de 2009

Blogue novo

Pessoas, desde o último dia 23, passa a existir um novo Blog, chamado Mangue Wireless, cujo manifesto editorial foi postado por Eli, dono do Blog Antes Quixote, e também tem a companhia de Mário Jr. do Blog do Mário Júnior, da Naísia, quem não tem nenhum outro blog e do Bicho-grilo que mantém o Blog Mordida de Preá.

Esperamos que a lista de colaboradores cresça.

E vocês que já visitam esse espaço passa a ter outro espaço para diálogos, polêmicas, etc, etc³

ta dado recado!

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Sim, Camarada

Sim, Camarada, é hora de jardim
E é hora de batalha, cada dia
É sucessão de flor e sangue,
Nosso tempo nos entregou amarrados
A regar jasmins
Ou a dessangrar-nos numa rua escura,
A virtude ou a dor se repartiram
Em zonas frias, em mordentes brasas,
E não havia outra coisa que eleger,
Os caminhos do céu,
Antes tão transitados pelos santos,
Estão hoje povoados por especialistas.

Já desapareceram os cavalos.

Os heróis vestidos de batráquios,
Os espelhos vivem vazios
Porque a festa é sempre em outra parte,
Onde já não estamos convidados
E há brigas nas portas.


Por isso este é o penúltimo chamado,
O décimo sincero toque
Do meu sino,
Ao jardim, camarada, à açucena,
À macieira, ao cravo intransigente,
À fragrância da flor de laranjeira,
E logo aos deveres da guerra.

Delgada é nossa pátria
E em seu despido fio de faca
Arde nossa bandeira delicada.


Pablo Neruda

Como se fabrica um mainstream...

Passei uns dias na minha terra natal e é impressionante perceber que nada mudou... e me parece que como diz uma música do Mopho..."Nada vai mudar".

Bom primeiro deixa eu falar do que se trata essa postagem, trata da política cultural implementada na cidade de aracaju desde a eleição do PT, para a prefeitura em 2000, e com ela que eu quero iniciar uma polêmica, que não vai parar nesse post, apenas vamos iniciar.

Acontece que na última década um certo "mainstream" foi forjado, fabricado como queiram na cidade de Aracaju, bandas como Reação, Naurêa e Maria Escobona, tocam em quase todos os eventos da prefeitura desde 2000.

Não quero me deter aqui sobre a qualidade sonora dessas bandas, mas posso dizer que dessas três só respeito mesmo a Reação, apesar de ser sabido que não sou lá muito fã de reggae, o fato é que por motivos vários essas bandas estão sempre presentes, criando praticamente um monopólio da música sergipana, e do dinheiro público nos últimos anos.

A olhos vistos houve, pelo menos na aparência uma mudança qualitativa na política cultural seja na prefeitura, seja no governo do Estado de Sergipe, depois que o PT e o PC do B, juntos com lideranças da direita Sergipana chegaram ao poder no estado. Os slogan Aracaju de Todos, parecia estar vingando, mas sempre na aparência... a essência da política continuava a mesma!

Assim sendo, logo que se "muda" o governante mudam também as figuras que frequentam as rodas de poder do Estado, e obviamente isso se reflete na política cultural. Bandas como Karne Krua, Snooze, Plástico Lunar(pra citar algumas das mais antigas), as mesmas que a anos vivem com seus amplificadores, e instrumentos músicais pra lá e pra cá, carregando várias vezes nas costas, dando suor de verdade para construir algo.

A "cena" independente Sergipana, por muitas vezes avessa à polêmicas, colocou no gueto banda que são tão boas(e na minha opinião melhores) do que qualquer uma que faz parte do maistream forjado à força e não pela qualidade dos seus músicos ou músicas(aqui de novo a execessão é a Reação e talvez pelos músicos e não pelas músicas a Maria Escobona).

O meio artístico sempre foi cheio de polêmicas, e se resisitiu a té hoje, foi em boa parte Às diversas polêmicas que rolaram entre músicos, poetas, escritores, artistas plásticos, etc... Mas em Aracaju quem manda é a máquina governamental... o ESTADO! Por tanto ou se enquadra ou tá fora!

BELOS GOVERNOS DEMOCRÁTICOS E POPULARES!

Na minnha humilde opinião, o que ta aí mudou os artistas, mudaram as opções pelos estilos músicais, mas na vida real e concreta não mudou a política... Onde por exemplo que foi criado um fórum para os artistas decidirem a política para as artes, alguns mandam, outros obedecem... alguns poucos batem de frente!

Eu me coloco aqui com os que batem de frente!

Coisas absurdas acontecem, por exemplo aniversário da Aperipê, emissora de rádio estatal, por tanto PÚBLICA, show com(de novo na minha opinião) a maior banda de rock da história do Brasil e pra mim, está entre as 10 melhores do mundo de todos os tempos: Os mutantes, maravilha, gostaria muito de estar nesse show, assim como gostaria de ver a Plástico Lunar abrindo o show dos caras, mas não, toca a Naurêa... recebendo um bom cachê muito provavelmente, e olha tenho certeza pelas influências musicais da Plástico Lunar, pra abrir pros Mutantes, tenho certeza, eles tocariam até de graça!!!

Mas o problemas é que algumas pessoas que achavam que a máquina Pública eram delas, tiraram férias e entraram os novos donos... ou aqueles que se acham donos com o nosso dinheiro, pago atravéz de todos os impostos que pagamos diariamente, e assim colocam seus interesses pessoais a cima de qualquer coisa!

Em geral, bandas mais conhecidas tocam por ter mais público, e assim os governos gastam mais dinheiro, mas divertem mais o "povo"...

A grande questão a se pensar é onde que por exemplo a Naurêa tem mais público e do que a Karne Krua ou a Plástico Lunar?

Sobre o mainstream, vou pegar uma definição internética já que estou na internet nesse momento, definição no wikipédia:

"Mainstream (em português corrente principal) é o pensamento corrente da maioria da população. Este termo é muito utilizado relacionado às artes em geral (música, literatura, etc).

Não vejo
e nenhuma banda dessas algo que seja "pensamento corrente da maioria da população", e por tanto não consigo compreender o por que da insistência com alguns poucos e não uma abertura maior para outros artistas.

Se a prefeitura e governo do Estado(dirigidos pelo PT e pelo PC do B) é realmente democrática, que abra espaços pra todo mundo, não só tocar, mas pra todo mundo discutir a sua política cultural, educacional, de saúde, que se criem conselhos, onde as pessoas discutam de fato as coisas, façam suas críticas, suas polêmicas, etc...

Quem tem medo de polêmica é por que sabe que ta tudo errado!

Aqui abro espaço no meu blog, para todos aqueles que de alguma forma estão sendo isolados e não compartilham com o Monopólio político-cultural existente no estado de Sergipe!

Aqui cabe uma explicação do por que eu disse que a Reação é a excessão(que sempre confirma a regra).

Bom pela segunda vez deixo claro que não gosto de Reggae, mas é impossível escutar essa banda e ver que os caras são bons de verdade, músicas boas, críticas necessárias, e talz, apenas acredito que devem ter muito cuidado para não se enquadrarem na moldura do Estado. Esses podem e devem e ir muito mais lionge do que os outros, por uma simples causa: São bons, humildes, e não dependem da prefeitura ou do Estado para fazer música boa!

Fabiano Santos

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

e a polêmica continua... Artigo de Alvaro Bianchi

aqui vc encontra a integra do texto

Antitrotskismo: manual do usuário
Alvaro Bianchi: Professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp, secretário de redação da revista Outubro e coordenador do Grupo de Estudos sobre o Marxismo de Leon Trotsky, sediado no Centro de Estudos Marxistas da Unicamp.

Tomei conhecimento, com retardo de alguns dias, do artigo publicado pelo publicista português Miguel Urbano Rodrigues em O Diário.info, com data de 11 de dezembro de 2008, a respeito de Leon Trotsky. [1] E embora minha reação seja extemporânea creio necessário divulgá-la. Urbano Rodrigues é um veterano jornalista que durante seu exílio no Brasil trabalhou no jornal O Estado de S. Paulo e na revista Visão. É também conhecido comunista e ocupou a frente do jornal Avante! após a Revolução dos Cravos, além de ter sido deputado na década de 1990 em Portugal. Mas o que motiva esta resposta não é a trajetória militante do jornalista, nem a difusão de seus textos no Brasil e Portugal e sim as idéias que tem lugar no artigo. Pode se objetar que não são idéias novas. De fato, como será visto mais adiante, trata-se da reprise de velhos temas do antitrotskismo sobre os quais se torna necessário voltar mais uma vez.

Em seu artigo, intitulado “Apontamentos sobre Trotsky: o mito e a realidade”, Urbano Rodrigues resmunga inconformado sobre um suposto paradoxo: ninguém hoje fala de Mikhail Gorbachev, mas “Trotsky continua a ser um tema que fascina muitos intelectuais da burguesia, alguns progressistas, e dezenas de organizações trotskistas na Europa e sobretudo na América Latina”. Admirado com esse “paradoxo” o articulista interroga-se: Por que essa sobrevivência de algumas teses do trotskismo no debate contemporâneo se contraditoriamente os partidos e movimentos trotskistas não são uma “força política com influência real no rumo de qualquer país”?

O “paradoxo” anunciado por Urbano Rodrigues é, evidentemente, artificial. O que tem a ver Gorbachov com Trotsky? Acaso o primeiro era um partidário, simpatizante ou mero admirador do segundo? Acaso as idéias de ambos eram similares em algum ponto? E quais são os tais “intelectuais da burguesia” fascinados por Trotsky? Em que “grandes universidades do Ocidente” eles estão? Que livros publicaram? Que artigos escreveram? Talvez o jornalista esteja fazendo referência ao monumental estudo de E. H. Carr sobre a revolução bolchevique. 2 Carr não era marxista e, em alguns pontos de sua narrativa, parece concordar com as posições de Trotsky, embora deixe claras suas inúmeras críticas. Mas afirmar que ele se encontrava fascinado pela vida e obra do revolucionário russo é no mínimo um exagero. Além do mais, infelizmente, Carr morreu há mais de 25 anos. Será que o espectro de sua enciclopédica pesquisa ainda assombra Urbano Rodrigues?

O suposto paradoxo apontado por Urbano Rodrigues parece encontrar apoio na identificação feita por ele entre antistalinismo e anticomunismo. Mas não há razão nenhuma para estabelecer tal identidade a não ser que o comunismo seja identificado com o stalinismo. Esse parece ser o ponto. Apegado a velhas idéias que há muito foram submetidas à critica devastadora o jornalista identifica o programa do comunismo e seu projeto de emancipação, com seu oposto, o stalinismo e o regime que ele deu lugar na União Soviética. A simpatia do jornalista por Stalin é assumida e em vários momentos se expressa apologeticamente. Protestando contra a satanização de Stalin, o jornalista escreveu:

“Sem a sua [de Stalin] acção à frente do Partido e do Estado, a URSS não teria sobrevivido à agressão bárbara do Reich nazi, sem ela a pátria de Lenine não se teria transformado em poucas décadas na segunda potencia mundial, impulsionando um internacionalismo que apressou a descolonização, incentivou e defendeu revoluções no Terceiro Mundo e estimulou poderosamente a luta dos trabalhadores nos países desenvolvidos do Ocidente.”

Não deixa de ser chocante que antes de ousar escrever sua engajada defesa do secretário-geral, Urbano Rodrigues apresente como uma façanha o fato de ter “sido dos primeiros comunistas portugueses a criticar o dogmatismo subjectivista de Stáline num livro apreendido pela ditadura brasileira”. Chocante não é o fato de ele achar que a crítica ao “dogmatismo subjetivista” vá ao âmago do fenômeno stalinista e sim o fato dessa crítica superficial ter sido feita “em 1968”, ou seja, doze anos depois do relatório Khrushchev e das referências aos “excessos” Stalin terem se tornado freqüentes na imprensa comunista internacional! O fato de Urbano Rodrigues estar no Brasil quando de sua façanha a torna ainda mais chocante essa “crítica”. No final dos anos 1950 e início dos anos 1960 a crítica ao stalinismo era corrente em diversas tendências da esquerda brasileira, não apenas trotskistas. Também no interior do Partido Comunista Brasileiro, organização que sempre se manteve fiel às diretrizes da União Soviética, essa era uma crítica freqüente. A façanha de estar doze anos atrasado inocenta Urbano Rodrigues do quê?

Mas a crítica de Urbano Rodrigues a Stalin, mesmo atrasada, estava longe de ser profunda. Ela limitava-se a “sua postura perante o marxismo e a condenação dos seus métodos e crimes”. Mas Stalin permanecia para o jornalista como “um revolucionário cuja contribuição para a transição do capitalismo para o socialismo na União Soviética foi decisiva”. O programa político do stalinismo permaneceria, assim, válido. Necessário seria, então, corrigir os excessos e mudar a “postura perante o marxismo”. Nos anos 1960 era essa a versão esclarecida do stalinismo. Hoje, quando a maior parte dos partidos comunistas definha perdendo peso social e relevância política essa é sua versão senil.

Evidentemente, não são os “intelectuais da burguesia” os que incomodam Urbano Rodrigues e sim as “dezenas de organizações trotskistas na Europa e sobretudo na América Latina”. É significativo que esse novo ataque ao trotskismo ocorra justamente quando essas organizações revelam uma forte tendência ao crescimento e à expansão, tendência simetricamente oposta à apresentada pelos antigos partidos comunistas.

Velhos e velhíssimos argumentos

É verdade que a demonização não contribuiu para a compreensão do fenômeno staliniano. Embora estivesse carregada de um juízo muito rigoroso sobre a personalidade do secretário-geral a crítica de Trotsky à burocracia soviética contribuiu de modo decisivo para uma visão política e social do fenômeno stalinista e do próprio Stalin que se afastava de toda tentativa de moralização e satanização. Para Trotsky, o “stalinismo é, acima de tudo, o trabalho automático de um aparelho sem personalidade no declínio da revolução”. [3]E em outra oportunidade escreveu de modo lapidar: “Stalin não é uma personalidade: ele é a personificação da burocracia”. [4]A burocracia soviética encontrou em Stalin sua encarnação, assim como após sua morte entrou seus sucedâneos. Por outro lado, o stalinismo sempre foi, para Trotsky não a encarnação do mal, mas um programa político consubstanciado nas teorias do socialismo em um só país e da revolução por etapas. Por essa razão, não é impróprio falar de stalinismo ou de partidos stalinistas após o relatório Khrushchev, quando os crimes de Stalin e o culto à personalidade foram denunciados mas seu programa político preservado.

Para tornar mais preciso esse conceito do stalinismo é necessário acrescentar que ele se define, também, pela simples negação – teórica, política e, em seus momentos, física – de seu antagonista. O stalinismo é, também, um antitrotskismo. Assim como o stalinismo reciclou-se, também o antitrotskismo o fez. Nos infames Processos de Moscou, Trotsky foi acusado de ser agente da Gestapo e liderar movimentos de sabotagem ao Estado soviético. Para Urbano Rodrigues “esse tipo de calúnias é tão absurdo, como expressão de um ódio irracional, como o esforço realizado por escritores anticomunistas e alguns governos para criminalizarem o comunismo como sistema comparável ao fascismo”. E tem razão.

Para além dos insultos e grotescas acusações, uma parte do arsenal do antitrotskismo consistiu no uso de passagens dos escritos de Lenin nos quais o dirigente do Exército Vermelho era alvo da crítica. Mas tarde essas passagens foram reunidas em coletâneas. [5]Isso, entretanto, foi insuficiente e prontamente se revelou necessário reescrever toda a história da revolução russa, operação que encontrou sua forma mais acabada na infame História do Partido Comunista da União Soviética (Bolchevique), publicada em 1938. A autoria desse livro de “história” era atribuída a uma comissão nomeada pelo Comitê Central, mas dez anos depois um artigo publicado na imprensa soviética atribuiu a verdadeira autoria a Stalin. [6]

Exceto por alguns renitentes arquistalinistas, o antitrotskismo depurou seus aspectos mais grotescos e procurou apresentar-se de modo mais sofisticado após a morte de Stalin. [7]Sua intensidade, entretanto paradoxalmente aumentou, dando lugar a uma verdadeira “síndrome antitrotskista”, nas palavras do historiador Gabriel García Higueras. A partir de meados dos anos 1960, respondendo, evidentemente ao crescimento do movimento trotskista, novos textos foram publicados. Robert McNeal, listou 29 livros contra Trotsky e o trotskismo publicados pela União Soviética entre 1965 e 1975 e García Higueras enumerou dez traduções para o espanhol desses trabalhos. [8]

Dentre essa literatura se destacam o incansável Mikhail Basmanov, além do não menos cansativo Leo Figuères. [9]Nesse período surgiu, também uma nova variante do antitrotskismo, a liberal e, mais recentemente, outra pós-soviética. [10]Os maoístas também deram sua esquizofrênica contribuição. Enquanto na França Kostas Mavrakis se esforçava para comprovar que sua crítica a Trotsky se distanciava da grosseira representação staliniana, em Pequim, onde não eram dados a tergiversar, dispensavam intermediários e publicavam uma alentada coletânea de textos de Stalin contra Trotsky e as oposições. [11]

Muito embora parte dessa bibliografia tenha eliminado as características mais brutais desse tipo de literatura, o antitrotskismo manteve ao longo do tempo alguns argumentos reiterados à exaustão. Não acrescentou novos e esclarecedores documentos, nem interpretações originais. Também não reagiu à publicação dos alentados estudos de E. H. Carr e de Isaac Deutscher, limitando-se a contrapor aos novos documentos e argumentos, simplesmente aquilo que estes desmentiam. Grosso modo, essa literatura não foi além daquilo que já estava na História do Partido Comunista da União Soviética (Bolchevique), depurando, em suas melhores versões, seus excessos.

Urbano Rodrigues dá mais uma volta nesse parafuso. Seu artigo é um pequeno manual do antitrotskismo. Não acrescentou nada de novo ao debate, reprisou temas e argumentos e, conforme será demonstrado a seguir, reproduziu de modo acrítico a contestada versão da historiografia staliniana. O argumento central do jornalista é muito simples: Trotsky e Lenin discordaram em várias oportunidades e polemizaram de modo muito duro. [12]Mas o que há de novo em afirmar que a posição de ambos era diferente na conferência de Zimmerwald, em 1916, assim como em Brest-Litovsk, em 1917, e no tocante aos sindicatos soviéticos, em 1921? Poderiam ser enumerados outros muitos casos, talvez o mais importante dos quais seja o desacordo no Segundo Congresso do POSDR e as críticas do jovem Trotsky à concepção de partido de Lenin. Mas não há nada a esse respeito que Basmanov, Figuères e Mavrakis não tenham dito, e antes deles o infame manual de história do Partido Bolchevique.

De modo pouco imaginativo Urbano Rodrigues decidiu retornar a velhos e gastos argumentos. Não citou nenhuma pesquisa recente sobre o tema, nem trouxe nenhuma nova informação; apenas repetiu. Sua descrição dos desacordos a respeito de Brest Litovsk é, nesse sentido, exemplar e, por essa razão, será aqui melhor discutida. Referindo-se aos desacordos no interior do partido Bolchevique, o jornalista acusa Alfred Rosmer e Rosenthal de terem omitido “que meses depois da sua adesão ao Partido Bolchevique, quando já exercia funções de grande responsabilidade, como dirigente, Trotsky divergiu de Lenine em questões de grande importância em momentos cruciais.” A acusação pode justificar-se com relação a Rosmer. De fato, em seu livro Moscou sous Lénine, o comunista francês não destaca essas diferenças, preferindo enfatizar aquelas que existiam com Bukharin e os “comunistas de esquerda”. Mas é completamente injustificada com relação a Rosenthal, que começa sua narrativa em 1927! [13]Além disso, Urbano Rodrigues poderia ter destacado o fato de que Isaac Deutscher, Pierre Brouè, Tony Cliff e Jean-Jacques Marie, simpatizantes de Trotsky e autores de incontornáveis biografias a respeito, detalharam à exaustão essas diferenças. [14]

De volta a Brest-Litovsk

Tem razão o jornalista, quando afirma que a “participação de Trotsky em Brest Litowski continua a ser tema polémico”. O stalinismo falsificou abertamente a história para criar boa parte dessa polêmica. Na História do Partido Comunista da União Soviética (Bolchevique) uma fantasiosa versão referente às polêmicas que tiveram ocasião no Partido Bolchevique à época das negociações em Brest-Litovsk foi apresentada. De acordo com essa versão, Trotsky, os “comunistas de esquerda” e os socialistas revolucionários de esquerda tramaram um complô para prender e assassinar Lenin, Stalin e Sverdlov:

“Mas o recente processo do anti-soviético ‘Bloco de Direitistas e Trotskistas’ (início de 1938) revelou agora que Bukharin e o grupo de “comunistas de esquerda” liderado por ele, juntamente com Trotsky e os socialistas-revolucionários ‘de esquerda’, conspiravam contra o governo soviético. Agora é sabido que Bukharin, Trotsky e seus companheiros conspiradores tinham determinado romper a Paz de Brest-Litovsk, prender V. I. Lenin, J. V. Stalin e Y. M. Sverdlov, assassiná-los e formar um novo governo com bukharinistas, trotskistas e socialistas revolucionários ‘de esquerda’” [15]

O livro cometia a proeza de falsificar os Processos de Moscou. No próprio juízo contra o “Bloco de Direitistas e Trotskistas”, Bukharin desmentiu essa versão, negando categoricamente qualquer plano para assassinar Lenin. Bukharin, entretanto, reconheceu que os “comunistas de esquerda” Karelin e Kamkov compareceram a uma reunião na qual os socialistas revolucionários fizeram a proposta de prender Lenin por 24 horas e assumir o comando da revolução, rompendo os acordos de Brest-Litovsk. Também afirmou que ambos comunistas rejeitaram veementemente a proposta. [16]Fica claro na narrativa de Bukharin que, apesar da tortura e chantagem nas quais esta havia sido forjada, ele não implicou Trotsky em nenhum complô. Sobre esse ponto, Bukharin, desafiando seus algozes ao menos uma vez, não disse nada que já não estivesse registrado nos anais da história, uma vez que o mesmo havia, em 1923, notificado o partido sobre essas conversas e o assunto havia sido comentado pelo jornal Pravda em 1924. [17]Mas para os dirigentes soviéticos a “confissão” de Bukharin embora forjada era insuficiente, foi necessário, assim, falsificá-la, atribuindo-lhe o que nunca disse.

A História do Partido Comunista da União Soviética (Bolchevique) também confundia as posições de Trotsky e Bukharin a respeito da paz, embora fossem significativamente diferentes. Segundo o manual,

“Os aliados nesse sinistro esquema eram Trotsky e seu cúmplice Bukharin, o ultimo juntamente com Radek e Pyatakov liderando um grupo hostil ao partido, mas camuflado sob o nome de “comunistas de esquerda”. Trotsky e o grupo dos “comunistas de esquerda” deram início a uma feroz luta no partido contra Lenin, exigindo a continuação da guerra. Essas pessoas faziam claramente o jogo da Alemanha imperialista e dos contra-revolucionários no país, pois agiram para expor a jovem república soviética, a qual não tinha ainda um exército, às garras do imperialismo germânico.” [18]

Segundo a História staliniana Lenin declarou que Bukharin e Trotsky “ajudaram o imperialismo alemão e entorpeceram o crescimento e desenvolvimento da revolução alemã.” [19]No texto original Lenin fez referência a Bukharin e outros “comunistas de esquerda”, mas não citou uma única vez a Trotsky. [20]Além de adulterar citações, o manual também ignorava as resoluções do partido e dos soviets que haviam sido tomadas e criava outras que nunca tiveram nem poderiam ter tido lugar, uma vez que Lenin era, em fevereiro, minoria no Comitê Central Bolchevique. A conclusão óbvia dessa fantasiosa história era que Trotsky não passava de um traidor:

“No dia 18 de fevereiro, as negociações de paz em Brest-Litovsk foram rompidas. Embora Lenin e Stalin, em nome do comitê Central do Partido tivesse insistido que a paz deveria ser assinada, Trotsky, que liderava a delegação soviética em Brest-Litovsk, traiçoeiramente violou as instruções diretas do Partido Bolchevique. Ele anunciou que a República Soviética recusava concluir a paz nos termos propostos pelos alemães. Ao mesmo tempo informou os alemães que a República Soviética não lutaria e continuaria a desmobiliar seu exército. Isso foi monstruoso. Os imperialistas alemães não poderia desejar anda mais desse traidor dos interesses do país dos soviets.” [21]

Embora o manual de historia stalinista faça um amálgama entre as idéias de Trotsky e Bukharin, durante as negociações três eram as posições no interior do partido Bolchevique: Lenin, apoiado por Zinoviev e Stalin, propunha que fossem aceitas todas as condições dos alemães nas negociações; Bukharin e os chamados “comunistas de esquerda”, defendiam a ruptura das negociações e a declaração de uma “guerra revolucionária” contra as potências imperialistas; Trotsky, por sua vez, advogava uma política na qual os bolcheviques deveriam se retirar das negociações e decretar a paz unilateralmente, sem aceitar as condições dos alemães.

A política de Trotsky, resumida pela palavra-de-ordem “nem paz, nem guerra”, era uma tentativa de ganhar tempo nas negociações apostando na estabilização do poder soviético e num levante dos trabalhadores ocidentais contra a guerra. A recusa à “paz” significava, nessa perspectiva, a rejeição das condições impostas pelos alemães e a denúncia de seus propósitos belicistas e anexionistas. A posição do representante do novo Estado soviético nas negociações era, certamente, a mais complexa e implicava uma fina percepção das mudanças na política das grandes potências e o acompanhamento dos acontecimentos no movimento operário europeu e, não menos importante, no desenrolar da guerra no front ocidental.

Embora Lenin não concordasse com todas as conseqüências da posição de Trotsky, não foi com esta que debateu de modo mais firme e sim com a posição de Bukharin. A posição deste último parecia ser majoritária na base do partido, principalmente em Moscou. Em uma reunião realizada no dia 8 de janeiro com os delegados bolcheviques que participariam da reunião do 3º Congresso dos Soviets, a posição de Bukharin obteve 32 votos, a de Trotsky, 16 e a de Lenin, francamente minoritária, recebeu 15 votos. [22]A seguir foi feita uma consulta com duas centenas de soviets locais sobre o tema da paz. Apenas dois foram a favor da paz – Petrogrado e Sebastopol – e os demais votaram a favor da Guerra revolucionária. [23]

Um áspero debate teve lugar a respeito no interior do Comitê Central, durante sua sessão de 11 de janeiro de 1918. As teses escritas por Lenin para essa reunião criticavam de modo minucioso “os argumentos em favor de uma guerra revolucionária imediata”, mas não faziam menção a Trotsky ou a sua posição nos debates. [24]Após apresentar suas teses, Lenin encaminhou proposta pela qual o Comitê Central autorizava a protelar por todos os meios a assinatura da paz. [25]A resolução de Lenin foi aprovada e apenas Zinoviev, propenso a aceitar rapidamente as condições dos alemães, votou contra ela. Lenin mantinha, entretanto, seus desacordos com o representante dos soviets em Brest Litovsk, como fica claro em seu discurso nessa reunião. Segundo Lenin, a posição de Trotsky era “uma demonstração de política internacional. Ao retirar nossas tropas o que conseguimos é entregar aos alemães a República Socialista da Estônia”. [26]Lenin considerava que a posição de Trotsky poderia tornar-se perigosa, embora no momento não fosse, e levar a concessões ainda maiores.

Depois de aprovada a moção de Lenin com o voto de Trotsky, este último apresentou outra proposta de resolução que não era contraditória com a anterior: “Interrompemos a guerra e não assinamos a paz – desmobilizamos o Exército”, por nove votos contra sete. [27]As versões sobre essa votação são bastante contraditórias. Serge escreveu a respeito que “Zinoviev, Stalin e Sokolnikov apoiaram Lenin. Lomov e Kretinski votaram pela guerra; a fórmula apoiada por Trotski, Bukharin e Uritski – prolongar as negociações – obteve a maioria dos votos.” [28]Mas Serge parece confundir duas votações diferentes. Além do mais todos os historiadores são unânimes em afirmar que Lenin encaminhou e votou na proposta de prolongar as negociações. Há também um grande acordo sobre o número de votos que a proposta de Trotsky recebeu. A questão é, então se ela recebeu o apoio de Lenin na votação. Deutscher não afirma se Lenin votou ou não na posição de Trotsky e Carr escreve não ser possível determinar como votaram os membros do comitê central, mas Jean-Jaques Marie em uma pesquisa mais recente afirma que para “Lenin, desmobilizar o exército sem concluir a paz era ir demasiado longe: ele vota contra”. [29]O 3º Congresso dos Soviets realizado pouco depois aprovou resoluções semelhantes, bem como o relatório de Trotsky sobre as negociações de Brest Litovsk no qual sua linha era apresentada e defendida.

Foi com essas resoluções e nenhuma outra que Trotsky partiu novamente para Brest. Mas antes de fazê-lo reuniu-se privadamente com Lenin e concordou com este de que se sob certas circunstâncias, dentre as quais a retomada das operações militares pelos alemães, abandonaria sua política em favor de Lenin. Este último, então, perguntou: “Mas nesse caso você não apoiaria a palavra-de-ordem de guerra revolucionária, não é mesmo?” A resposta de Trotsky foi taxativa: “Sob circunstância alguma”. “Então”, ponderou Lenin, “o experimento pode não ser tão perigoso”. E a seguir concluiu jocosamente: “Nós só corremos o risco de perder Estônia ou Letônia em troca de uma boa paz com Trotsky”. [30]Obviamente, uma conversa como essa não poderia se sobrepor, a não ser em uma autocracia, às decisões do Comitê Central e do Congresso dos Soviets. Foi portanto com o mandato imperativo outorgado pelo partido e pelos soviets que Trotsky conduziu seu comportamento nas negociações de Brest Litovsk.

Durante os primeiros momentos das negociações a posição de Trotsky se revelou a mais adequada e um ponto de convergência entre as diferentes posições no interior do partido. Também permitiu evitar uma ruptura que pareceu a todos premente. Lenin, sem dúvida, a considerava um mal menor quando comparada à posição de Bukharin como fica claro em suas teses e nas diferentes ênfases de seu discurso. A posição de Trotsky, sintetizada na expressão “nem paz, nem guerra”, pretendia “esgotar as potencialidades revolucionárias e convencer os proletários do Ocidente da intransigência dos bolcheviques com respeito ao imperialismo austro-alemão.” [31]

Não era fácil, entretanto, convencer o proletariado europeu das intenções do novo governo soviético. Na social-democracia alemã ninguém entendia a atitude dos bolcheviques. Lenin relatou possuir um documento no qual as posições de duas frações do centro da social-democracia alemã estavam expressas: uma delas achava que os bolcheviques haviam se vendido ao alto-comando alemão e que as negociações de Brest-Litovsk eram jogo de cena; a outra, da qual Kautsky era mais próximo, não questionava a integridade dos bolcheviques, mas considerava sua conduta um “enigma psicológico”. [32]Mesmo na Rússia, liberais, mencheviques e populistas consideravam as negociações com os alemães como puro jogo de cena. [33]

A atitude de Rosa Luxemburg a respeito das negociações em Brest-Litovsk ilustra essa confusão. Em janeiro de 1918, a revolucionária alemã escreveu que os russos estavam escolhendo entre reforçar a Entente ou o imperialismo alemão. [34]Acreditava que a primeira consequencia do armistício era o deslocamento de tropas para o Oeste e o recrudescimento do insano morticínio que caracterizava a guerra imperialista. Esta opinião perdurou e ela voltou a escrever, em setembro do mesmo ano, que a capitulação dos bolcheviques em Brest-Litovsk teve como conseqüência um enorme reforço da política imperialista pangermânica e o enfraquecimento da revolução alemã. [35]Porém, o amigo de Luxemburg, Karl Liebknecht compreendeu melhor os objetivos da política de Trotsky em Brest Litovsk:

“É fácil condenar agora os erros de Lenin e Trotsky. Não é exato que a evolução futura da solução atual será pior do que seria um retorno ao começo de fevereiro em Brest. O contrário é o verdadeiro. Tal retorno teria feito aparecer a imposição final como uma vis haud ingrata. O cinismo espantoso, a crueldade bestial da exigência final alemã fizeram desaparecer todas as suspeitas. Do ponto de vista da propaganda revolucionária o efeito estimulante compensou muito o efeito calmante.” [36]

O texto de Liebknecht permite compreender o impacto do adiamento do acordo sobre a consciência do proletariado europeu. A postergação do desfecho permitiu denunciar as intenções belicistas alemãs e seu propósito de aniquilar o regime dos soviets. Escrevendo em 1926 a respeito da política externa soviética Christian Rakovsky registrou: “Se a vitória material ficou com a Alemanha e a Áustria, a vitória moral coube à delegação soviética”. [37]A frase de Rakovsky não era tentativa de salvar politicamente uma derrota. Quando Rakovsky escreveu seu artigo, em 1926, já se sabia o resto da história. Comprometidos com a frente ocidental, os alemães não tinham força para aniquilar o poder dos soviets. Pretendiam apoderar-se das reservas de trigo e carvão da Ucrânia, necessárias para a continuidade da guerra e deslocar seus exércitos para o Oeste o mais rápido possível. Ao mesmo tempo, a irrepreensível conduta bolchevique em Brest-Litovsk alimentou a revolução na própria Alemanha. Em novembro de 1918 soviets de operários e soldados foram constituídos em Berlim, o Kaiser Guilherme II foi derrubado, a república proclamada e o tratado imposto aos soviéticos cancelado. [38]

Sob vários aspectos a política de Trotsky era extremamente realista. Ele estava disposto esgotar todo o tempo possível, adiando ao máximo a assinatura da paz, mesmo correndo o risco de uma nova ofensiva alemã. Sua posição implicava em uma firme oposição à política da guerra revolucionária e pretendia ganhar tempo. Nesses pontos ela era completamente coincidente com os propósitos de Lenin. Trotsky, entretanto, não era tão favorável quanto Lenin a aceitar as condições dos alemães. Mas também não considerava que a fórmula “nem paz, nem guerra” fosse um princípio e estava disposto a assinar a paz aceitando as condições, caso ficasse claro que os alemães promoveriam uma nova ofensiva sobre o território soviético.

As negociações com os alemães deixaram de avançar na segunda semana de janeiro e se tornaram rapidamente inúteis. [39]Os alemães insistiam que a Ucrânia estivesse representada na reunião pelo governo burguês da Rada. Trotsky havia questionado essa participação, mas a aceitou enquanto esse governo manteve-se no poder em Kiev. No dia 21 de janeiro (3 de fevereiro) Trotsky recebeu por rádio uma mensagem de Lenin: “A Rada de Kiev caiu. Todo o poder na Ucrânia está em mãos do soviet.” A mensagem também informava a respeito dos sucessos obtidos na Finlândia, na região do Don e, finalmente, em Berlim e Viena, onde haviam sido criado soviets operários. Eufórico, Lenin escrevia: “Correm rumores de que Karl Liebknecht foi posto em liberdade e pronto liderará o governo alemão” [40]Os alemães responderam com uma provocação, assinando uma paz em separado com a Rada, um governo que não existia mais.

A agitação operária em Berlim e Viena teve o paradoxal efeito de fortalecer a facção belicista entre os negociadores alemães. Guilherme II ordenou, então ao chefe da delegação alemã em Brest-Litovsk, Von Kuhlmann, que apresentasse um ultimato aos russos. [41]Em 28 de janeiro (10 de fevereiro pelo calendário ocidental) o general Hoffmann, representante do Estado Maior alemão nas negociações deu o passo decisivo, exibindo um mapa no qual eram mostradas as anexações propostas pelos alemães e anunciando o ultimatum. Trotsky consultou Lenin a respeito e este respondeu em um telegrama: “Você conhece nosso ponto de vista; só foi confirmado ultimamente, principalmente depois da carta de Ioffe. Repetimos uma vez mais que não ficou nada da Rada de Kiev e que os alemães se verão obrigados a reconhecer isso, se já não o fizeram. Mantenha-nos informados. Lenin.” [42]

Quando os representantes da Alemanha e da Rússia soviética se reuniram novamente para apreciar o ultimato anunciado por Hoffmann, Trotsky anunciou, com base no mandato recebido pelo partido e pelos soviets, que o governo soviético considerava unilateralmente encerrada a guerra:“Entrego aos Delegados da Aliança [Potências Centrais] a seguinte declaração escrita e assinada: ‘Em nome do Conselho dos Comissários do Povo, o governo da República Federal Russa informa os Governos e povos unidos em Guerra contra nós, os países da Aliança e neutrais, que se recusando a assinar uma paz de anexações, a Rússia declara, por seu lado, que o estado de guerra com a Alemanha, Áustria-Hungria, Turquia e Bulgária está encerrado. As tropas russas estão recebendo neste momento uma ordem para a desmobilização geral em todas as linhas do front.” [43]

A reação dos alemães foi de espanto. Todos ficaram em silêncio tentando compreender o que acontecia, até que o general Hoffmann gritou escandalizado: “Unerhort! (Inacreditável!)” A teatral retirada dos bolcheviques tinha o claro propósito de evidenciar a culpa dos alemães no fracasso das negociações de paz. No dia 14 de fevereiro, já em Moscou, Trotsky apresentou seu relatório sobre as negociações em Brest-Litovsk para o Comitê Central Executivo dos Soviets. Ao final da sessão, uma declaração oficial informou que “uma resolução foi votada a qual aprovou o conjunto da política da Delegação a Brest-Litovsk do Conselho de Comissários do Povo”. [44]

Imediatamente os alemães anunciaram que uma nova ofensiva sobre o território soviético teria lugar dentro de dois dias, violando o acordo inicial assumido em Brest Litovsk que previa um aviso com sete dias de antecedência. A ofensiva teve início no dia 17 de fevereiro. Na reunião do Comitê Central realizada no mesmo dia Trotsky votou com os “comunistas de esquerda” uma moção contrária a novas negociações de paz esperando notícias mais precisas sobre o avanço alemão. Mas no dia seguinte, quando essas notícias chegaram, Trotsky votou com Lenin. Quando os alemães apresentaram suas condições ainda piores para uma paz, Trotsky apesar de considerá-las humilhantes votou novamente, na reunião do Comitê Central do dia 23 de fevereiro, a favor da proposta pacifista defendida por Lenin. Embora a paz tivesse sido assinada em 3 de março, as exigências dos alemães continuaram e não estava descartado um ataque alemão. Mesmo assim o 7º Congresso Extraordinário do Partido Bolchevique da Rússia aprovou, em 6 de março, a ratificação do acordo, mais uma vez com o voto de Trotsky. Foi nessa ocasião que Lenin pronunciou o discurso citado por Urbano Rodrigues:

“Devo referir-me agora à posição do camarada Trotsky. Na sua actuação devemos distinguir duas fases: quando iniciou as negociações de Brest, utilizando-as excelentemente para a agitação, todos estivemos de acordo com ele. Trotsky citou parte de uma conversa comigo, mas devo acrescentar que concordamos manter-nos firmes até ao ultimato dos alemães, mas cederíamos após ele. Os alemães intrujaram-nos porque de sete dias roubaram-nos cinco. A táctica de Trotsky foi correcta enquanto se destinou a ganhar tempo; tornou-se equívoca quando se declarou o fim do estado de guerra, mas não se assinou a paz. Eu tinha proposto com toda a clareza que se assinasse a paz de Brest”. [45]

Lenin considerava que essa diferença com Trotsky era “historia passada, que não vale a pena recordar”. [46]De fato, era história que havia sido resolvida mediante votações no Comitê Central e no Congresso dos Soviets. O desacordo de Lenin com Trotsky era agora outro e não dizia respeito à assinatura da paz com os alemães e sim à assinatura da paz com o governo da Rada na Ucrânia, reinstituído em Kiev pelos alemães. No Congresso do Partido, Trotsky era favorável a aceitar os termos do acordo impostos pelos alemães, mas encaminhou um adendo à proposta de Lenin recusando explicitamente a assinatura de qualquer futuro acordo de paz com a Rada. Lenin se manifestou contrariamente a essa proposta, mas não se declarou favorável a assinatura de qualquer acordo com a Rada. Argumentou, pelo contrário, que “tudo depende da correlação de forças e do momento em que se produza a ofensiva de uns ou outros países imperialistas contra nós.” [47]

Após o Congresso adotar uma resolução na qual as novas condições para a paz impostas pelos alemães foram aceitas, teve lugar a eleição do Comitê Central do partido Bolchevique. O resultado dessa eleição é muito importante para avaliar o peso político dos diferentes dirigentes soviéticos. Lenin e Trotsky foram os mais votados, com 37 votos cada um; Bukharin obteve 36; Smirnov, 32; Zinoviev, 30; Skolnikov, 25; Stalin, 21; Radek, 19; e Obolensky, 7. Com a exceção de Lenin, que morreu em 1924 devido as seqüelas provocas por um atentado, todos os demais foram executados por ordem de Stalin. [48]

“As cabeças pensantes da revolução”

Um ponto central no argumento de Urbano Rodrigues é sua interpretação da passagem acima transcrita do informe político de Lenin ao 7º Congresso. Segundo o jornalista:

“A transcrição (parte de uma intervenção extensa) é esclarecedora porque a posição assumida por Trotsky (‘nem paz nem guerra’), ignorando as instruções de Lenine, levou os alemães a romper a trégua e desencadear uma ofensiva de consequências desastrosas, ocupando enormes extensões do país. Quando o Tratado de Paz foi finalmente assinado, as condições impostas foram muito mais severas do que as inicialmente apresentadas pelo Império Alemão.”

A transcrição é mesmo uma pequena parte de um texto muito mais extenso. Na edição das Obras completas, são trinta páginas nas quais em sua maior parte Lenin rebate os argumentos favoráveis à “guerra revolucionária” e em apenas três delas se dedica a discutir a posição de Trotsky. Lenin jamais afirmou que Trotsky agiu “ignorando (su)as instruções”. A razão para nunca ter afirmado isso é simples: não poderia fazê-lo a menos que sugerisse que Trotsky deveria ter rompido a disciplina do partido e dos soviets e o mandato para não assinar a paz que estes lhe haviam outorgado na reunião do dia 11 de janeiro. Lenin não concordava integralmente com a proposta aprovada nessa reunião, mas havia aquiescido com sua implementação e, por essa razão, não deixou de aprovar o conjunto da ação do representante dos soviets em Brest-Litovsk, conforme a moção votada pelo Comitê Executivo dos Soviets aqui citada. É por esse motivo que Lenin afirmou que “todos estivemos de acordo com ele (Trotsky)”.

No 7º Congresso, como visto anteriormente, o desacordo de Lenin com Trotsky dizia respeito ao acordo com a Rada ucraniana: “Às novas demandas que formula Trotsky, de que ‘prometa não assinar a paz com Vinnichenko [o líder da Rada]’, lhe respondo de que maneira nenhuma me comprometerei com qualquer coisa semelhante”. [49] A paz com a Rada, de fato não foi assinada, como queria Trotsky. Os alemães logo depuseram o governo ucraniano e o substituíram por um novo títere, deixando claro, desta vez que não tinham o menor interesse na auto-determinação ucraniana, como argumentavam na mesa de negociações em Brest-Litovsk.

A versão da infame História do Partido Comunista da União Soviética (Bolchevique) é, nesse aspecto, condizente e similar em seus termos com a de Urbano Rodrigues, uma vez que ela afirma, como já visto, que Trotsky “traiçoeiramente violou as instruções diretas do Partido Bolchevique”. Que “instruções” são essas às quais tanto Stalin como Urbano Rodrigues coincidentemente fazem referência? Elas só poderiam provir da conversa particular entre Lenin e Trotsky sobre a qual ambos fizeram referências no debate do 7º Congresso, mas que não era do conhecimento do partido até esse momento, ou, então, do telegrama de Lenin, do dia 28 de janeiro no qual ele dizia apenas: “Você conhece nosso ponto de vista”. Trotsky conhecia esse “ponto de vista”, sabia a diferença que existe entre um “ponto de vista” e uma instrução e, least but not least, estava ciente de que a posição de Lenin era, até então, minoritária no partido.

O estudo dos debates no interior do partido Bolchevique, à luz do contexto histórico no qual tiveram lugar, pode demonstrar a complexidade situação vivida e das posições políticas neles defendidas. Brest-Litovsk não foi uma exceção. A historiografia stalinista simplificou enormemente esses debates apresentando-os sempre de modo maniqueísta. Urbano Rodrigues não fez diferente. Desse e de outros episódios nos quais Lenin e Trotsky divergiram, todos analisados de modo constrangedoramente superficial e a partir dos mesmos precários documentos concluiu:

“a tentativa dos seus epígonos e de Historiadores burgueses de o guindar a ‘companheiro de Lenine’, colocando-o ao nível do líder da Revolução, falseia grosseiramente a História. Trotsky não foi nem o revolucionário puro que os trotskistas veneram como herói da humanidade, nem o traidor fabricado por Stáline.”

Evidentemente não faltaram aqueles que procuraram canonizar Trotsky ou transformar o trotskismo em uma espécie de religião. Tendências similares podem ser encontradas em outros movimentos políticos vinculados à história do movimento operário, mas nenhum deles foi tão longe na mistificação como o stalinismo. As quatro mais importantes biografias sobre Leon Trotsky escritas a partir de perspectivas que simpatizam com o revolucionário russo – a de Deutscher, Cliff, Brouè e Marie – estão muito longe de considerar Trotsky um revolucionário puro e analisam de modo detalhado as diferenças entre ele e Lenin.

Mas afirmar que Trotsky não era, aos olhos do movimento comunista internacional de sua época, “companheiro de Lenin”, isto sim “falseia grosseiramente a História”. Antes mesmo da fundação da Internacional Comunista os nomes de Lenin e Trotsky vinham juntos na imprensa socialista. Rosa Luxemburgo, conhecedora profunda dos assuntos russos, por exemplo, escrevia, em 1918, a respeito das “cabeças pensantes da revolução russa, Lenin e Trotsky” e referia-se aos “políticos geralmente lúcidos e críticos que são Lenin, Trotsky e seus amigos”. [50]Também não poupava elogios ao registrar: “Toda a coragem, a energia, a perspicácia revolucionária, a lógica da qual um partido revolucionário pode fazer prova em um momento histórico, tiveram Lenin, Trotsky e seus amigos”. [51]A identidade estratégica entre Lenin e Trotsky era, para ela, total a ponto de referir-se à “teoria da ditadura segundo Lenin e Trotsky” e, logo adiante, para simplificar, unir exageradamente os dois personagens em um só, escrevendo sobre a “teoria de Lenin-Trotsky”. [52]A referência conjunta a “Lenin e Trotsky” era comum também nos textos de Karl Liebknecht. [53]Nem Luxemburg, nem Liebknecht fizeram ao longo de seus escritos referência a Stalin, até então um completo desconhecido. Sabe-se que os dirigentes da Liga Spartacus não eram epígonos de Trotsky. Seriam eles, então, os “historiadores burgueses” aos quais o jornalista faz referência?

A relação entre Lenin e Trotsky foi sempre psicologicamente tensa, mas de mútuo respeito e admiração. Seria um equívoco comparar essa relação, com os profundos laços de amizade que uniram Marx e Engels. Politicamente, os dois dirigentes soviéticos divergiram entre si um grande número de vezes, mas a partir de 1917 a convergência estratégica entre ambos tornou-se profunda. Lenin retornou à Rússia em abril e anunciou sua nova posição na qual abandonava a palavra de ordem de “ditadura democrática do proletariado e dos camponeses”. Em agosto do mesmo ano, Trotsky aderiu ao Partido Bolchevique. Uma nova fase dessa complexa relação teve início. Essa convergência não impediu que tivessem idéias próprias e muitas vezes conflitantes sobre vários pontos. Suas personalidades eram fortes e defendiam seus pontos de vista de modo enfático. Não eram os únicos a proceder desse modo no interior do Partido Bolchevique. Após a morte de Lenin teve início uma dura luta política e ideológica no interior do Partido Bolchevique.

Para sustentar as novas posições de poder ocupadas depois da morte de Lenin, Zinoviev, Kamenev e Stalin lançaram uma ofensiva sobre a história da revolução russa, procurando diminuir o lugar de Trotsky nela e afastá-lo do legado lenineano. Lenin anteviu esse movimento e, por essa razão, em seu testamento escreveu que o fato de Trotsky não ser um velho bolchevique não o desmerecia e era coisa que deveria ser deixada para trás. Certamente não o foi. Trotsky respondeu com todas suas energias esse ataque levado a cabo sobre o terreno da história e produziu como resposta algumas das obras-primas da historiografia marxista: A revolução desfigurada (1929), Minha vida (1930) e História da Revolução Russa (1932). Mas por razões de ordem política optou por diminuir suas opiniões sempre que estavam confrontadas com Lenin. Continuar a insistir com isso é um erro. Lenin e Trotsky precisam recuperar seu lugar real como homens de grande envergadura política, moral e intelectual, mas também como seres humanos que cometiam erros e refletiam a respeito deles. Mas para tal é preciso responder vivamente cada vez que as velhas e desgastadas idéias do antitrotskismo staliniano reaparecem. Golpe a golpe; verso a verso.

NOTAS* Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas, diretor do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) e secretário de redação da revista Outubro.

[1]Miguel Urbano Rodrigues. Apontamentos sobre Trotsky: o mito e a realidade. O Diario.info, 11 dez. 2008. Disponível em: http://www.odiario.info/articulo.php?p=973&more=1&c=1

[2] E. H. Carr. The Bolshevik Revolution 1917-1923. New York : MacMillan, 1950-1953, 3v.

[3] Leon Trotsky. Ma vie. Paris: Gallimard, 1953, p. 592.

[4] Leon Trotsky. Ce que je pense de Staline. In: Oeuvres. Grenoble: Institut Leon Trotsky, 1986, p. 214.

[5] P. ex. V. I. Lenin. Trotzky julgado por Lenine. Rio de Janeiro: Calvino, s.d..

[6] Central Comitte of the C.P.S.U(b). History of the Communist Party of the Soviet Union (Bolsheviks). Nova York, International Publisher, 1939. Para os antecendentes desse livro, bem como para a questão de sua autoria, ver Raymond Garthoff. The Stalinist revision of History: the case of Breast-Litovsk. World Politics, v. 5, n.1, p. 66-85, 1952.

[7] O arqui ou arqueostalinismo ainda persiste. Em uma bizarra biografia de Stalin na qual seu autor procura construir uma aparência de cientificidade citando alguns estudos pouco conhecidos ao mesmo tempo em que trunca e descontextualiza as citações de praxe, é afirmado: “Com efeito, em 1936, estava evidente para qualquer pessoa, analisando lucidamente a luta de classes no nível internacional, que Trotski tinha degenerado a ponto de se tornar um joguete das forças anticomunistas de todo gênero”. O mesmo biografo justifica os processos contra Piatakov afirmando que ele “tinha utilizado em grande escala especialistas burgueses para sabotar as minas”. A acusação é ridícula, mas o autor a torna mais grave, uma vez que a atribúi aos trotskistas, sem mencionar que no final da década de 1930 Piatakov havia rompido com Trotsky (ver Ludo Martens. Stalin: um novo olhar. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 178 e 185).

[8] Robert H McNeal. The revival of Soviet anti-trotskysm. Studies in comparative Communism. V. X, n. 1-2, p. 5-17, 1977. Gabriel García Higueras. Trotsky em El espejo de la história. Lima: Tarea Educativa, 2005, p. 228

[9] M. I. Basmanov. La esencia antirrevolucionaria del trotskismo contemporâneo. La Habana: Ciencias Sociales, 1977; Os trotskistas e a juventude. 2 ed. Lisboa : Estampa, 1975; La fraseología “izquierdista” al servicio de los enemigos de la paz: el trotskismo y la distensión internacional. Moscovo: Nóvosti, 1975, M. I. Basmanov et al. El falso profeta: Trotski y el trotskismo. Moscou: Progresso, 1986; e Léo Figuères. O trotskismo. 2 ed.. Lisboa: Estampa, 1974.

[10] A vertente liberal pode ser ilustrada por Joel Carmichael. Trotsky: an appreciation of his life. London: Hodder and Stoughton, 1975. A vertente pós-soviética é representada, dentre outros, por Dmitrii Antonovich Volkogonov. Trotsky: the eternal revolutionary. New York: The Free Press, 1996; Ian D. Thatcher. Trotsky. London: Routledge, 2003 e Geoffrey Swain. Trotsky. Londres: Longman, 2006. Embora Urbano Rodrigues goste de inventar paradoxos, não se deu conta do paradoxo que representa a existência, ao lado do antitrotskismo staliniano de outros – liberal e pós-soviético – que apresentam grande coincidência de argumentos com o primeiro, embora com propósitos diferentes.

[11] Kostas Mavrakis. Du trotskysme: questions de theorie et d histoire. Paris: F. Maspero, 1971 e J. V. Stalin. On the opposition, 1921-1927. Pequim: Foreign Languages Press, 1974. Alguns desses textos de Stalin foram republicados logo a seguir em Portugal Josef Stalin. Escritos sobre o trotskismo, 1924-1937: Trotskismo ou leninismo?. [Lisboa]: Pensamento e Acção, 1975 e Trotskismo ou leninismo. Lisboa: Seara Vermelha, 1976.

[12] Quem quer que conheça as obras de Lenin e Trotsky saberá que não havia uma “veemência verbal pouco comum”, como afirma Urbano Rodrigues. Os termos utilizados no debate não diferem daqueles que dirigiram a outros bolcheviques em ocasiões diversas. Podem-se censurar os excessos retóricos que marcavam o modo russo de conduzir o debate político, mas enquanto Lenin viveu essa veemência não se transformou em insultos ou falsas acusações como ocorreu com a publicística staliniana após 1924.

[13] Alfred Rosmer. Moscou sous Lénine. Paris: Maspero, 1970 e Gerard Rosenthal. Avocat de Trotsky. Amadora: Bertrand, 1975.

[14] Isaac Deutscher. Trotski. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, 3 v.; Pierre Brouè. Trotsky. Paris: Fayard, 1988; Tony Cliff. Trotsky. Londres: Bookmarks, 1990, 4v.; e Jean-Jacques Marie. Trotsky: révolutionnaire sans frontières. Paris: Payot, 2006. Urbano Rodrigues cita Deustcher, mas claramente desconhece a obra de Brouè, Cliff e Marie, uma vez que afirma que nas últimas décadas não foram publicados “livros importantes que acrescentem algo de significante”. Sobre esses autores é preciso esclarecer que Deutscher afastou-se das idéias de Trotsky e da Quarta Internacional, o que fica evidente no terceiro volume de sua biografia.

[15] Central Comitte of the C.P.S.U(b). History of the Communist Party of the Soviet Union (Bolsheviks). Nova York, International Publisher, 1939, p. 218.

[16] Last Plea of Bukharin. The Slavonic and East European Review, v. 17, n. 49, 1938, p. 128-129.

[17] Raymond Garthoff. Op. cit., p. 71.

[18] Central Comitte of the C.P.S.U(b). Op. cit., p. 216.

[19] Idem, p. 217.

[20] V. I. Lenin. Una seria lección y una seria responsabildad. In: Obras completas. Madri: Akal, 1976, v. XXVIII, p. 285.

[21] Central Comitte of the C.P.S.U(b). Op. cit., p. 216.

[22] Isaac Deutscher. Trotski: o profeta armado, 1879-1921. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p. 397 e Sydney D Bailey. Stalin’s falsification of history: the case of the Brest Litovsk treaty. Russian Review, v. 14, n. 1, 1955, p. 26.

[23] John W. Wheeler-Bennett. Brest-Litovsk: the Forgotten Peace, March 1918 . London : Macmillan, 1938, p. 191 (o livro de Wheeler-Bennett, um historiador conservador, permanece até o momento uma fonte incontornável pela sua riqueza de detalhes ) e Leon Trotsky. Ma vie. Paris: Gallimard, 1953, p. 453-454.

[24] V.I. Lenin. Para La historia de uma paz infortunada. In: Obras completas. Madri: Akal, 1976, v. XXVIII, p. 118-126.

[25] V.I. Lenin. Discursos sobre la guerra y la paz en una reunión del CC Del POSDR(b), 11 (24) de enero de 1918. Acta. Op. cit., p. 132.

[26] V.I. Lenin. Discursos sobre la guerra y la paz en una reunión del CC Del POSDR(b), 11 (24) de enero de 1918. Acta. In: Obras completas. Madri: Akal, 1976, v. XXVIII, p. 132.

[27] Isaac Deutscher. Op. cit., p. 398.

[28] Victor Serge. O ano I da Revolução Russa. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 199.

[29] Isaac Deuscher. Trotski: o profeta armado, 1879-1921. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p. 398-399; E. H. Carr. Op. cit., v. 3 e Jean-Jacques Marie. Op. cit., p. 156. Agradeço a Gabriel García higueras por ter me chamado a atenção sobre a interpretação de Jean-Jacques Marie.

[30] John W. Wheeler-Bennett. Op. cit., p. 192-193. Embora não cite a fonte do diálogo Wheeler-Bennett baseia sua reconstrução evidentemente em relato de Trotsky (cf. Leon Trotsky. Ma vie. Op. cit., p. 454).

[31] Victor Serge. O ano I da Revolução Russa. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 220.

[32] V.I. Lenin. Discursos sobre la guerra y la paz en una reunión del CC Del POSDR(b), 11 (24) de enero de 1918. Acta. Op. cit., p. 130. Ver, tb., Leon Trotsky. Ma vie. Op. cit., p. 451.

[33] Leon Trotsky. Ma vie. Op. cit., p. 440.

[34] Rosa Luxemburg. La responsabilitè historique. In: Oeuvres. Paris, Maspero, 1962, v. II, p. 43.

[35] Rosa Luxemburg. La tragédie russe. In: Oeuvres. Paris, Maspero, 1962, v. II, p. 47.

[36] Karl Libknecht. Militarismo, guerre, revolution. Paris: Maspero, 1970, p. 189. Leon Trotsky cita essa mesma passagem com a exceção da primeira e da última frase (cf. Leon Trotsky. Ma vie. Op. cit., p. 461-462) e, com base nela, comenta a evolução política de Libekknecht. Vis haud ingrata é uma violência não indesejada.

[37] Christian Rakovsky. The Foreign Policy of Soviet Russia. Foregin Affairs, Jun. 1926, p. 577.

[38] Ver os documentos em John W. Wheeler-Bennett. Op. cit., appendix X-XI.

[39] Ver a esse respeito John W. Wheeler-Bennett. Op. cit., cap. VI.

[40] V. I. Lenin. Por radio. A todos, en especial a la delegación de paz en Brest Litovsk. In: Obras completas. Madri: Akal, 1976, v. XXVIII, p. 190.

[41] Cf. Victor Serge. O ano I da Revolução Russa. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 204-205.

[42] V. I. Lenin. A Trotski. Delegación rusa de paz. Brest-Litovsk. In: Obras completas. Madri: Akal, 1976, v. XXVIII, p. 201.

[43] Apud John W Wheeler-Bennett. Op. cit., p. 227.

[44] Judah L. Magnes. Russia and German at Brest Litovsk: a documentary history of peace negociations. Nova York: The Rand School of Social Sciences, 1919, p. 134 (grifos meus). Segundo Bailey, essa resolução foi proposta por Sverdlov, o qual estava incondicionalmente aliado a Lenin nesse debate (cf. Sydney D Bailey. Stalin’s falsification of history: the case of the Brest Litovsk treaty. Russian Review, v. 14, n. 1, 1955, p. 27).

[45] Transcrevemos o texto conforme Urbano Rodrigues. A íntegra do informe de Lenin com a referida passagem está em V. I. Lenin. Palabras finales para el informe político del Comitê Central. 8 de marzo. In: Obras completas. Madri: Akal, 1976, v. XXVIII, p. 315-323. Em uma nota de rodapé Urbano Rodrigues esclarece que sua citação de Lenin foi extraída de “V. I. Lenine, Textos extraídos das Obras Completas de Lenine, Ed. Estampa, Lisboa 1977, pág 260”. Não existe livro com esse título e, por isso, permanece desconhecida a fonte do jornalista Urbano Rodrigues. Na mesma cidade, na mesma editora e no mesmo ano, foi publicada uma coletânea de Lenin intitulada Contra o trotskismo (Lisboa: Estampa, 1977).

[46] Idem, p. 319.

[47] V. I. Lenin. Intervenciones contral las enmiendas de Trotski a la resolución sobre La guerra y La paz. 8 de marzo. In: Obras completas. Madri: Akal, 1976, v. XXVIII, p. 325.

[48] Cf. Raymond L. Garthoff. Op. cit., p. 78.

[49] Idem.

[50] Rosa Luxemburg. La revolution russe. Oeuvres. Paris, Maspero, 1962, v. II, p. 58 e 70.

[51] Idem, p. 65.

[52] Idem. 83 e 87

[53] Karl Liebknecht. Op. cit., p. 188, 189.



 
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