Pérola

"Nós entendemos que Israel tem o direito de se defender pois nesses últimos anos o Hamas lançou diversos foguetes na região"
Barack Obama

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Uma polêmica interessante!

Aí pessoal, no final do ano passado se abre uma nova(velha)polêmica no interior da esquerda mundial. O Miguel Urbano, comunista do velho PC Português, lança um texto chamado "Trotsky - entre o mito e a realidade."

O Mario Maestri respondeu a altura, esse foi um dos textos que eu vi de resposta, penso que essa polêmica ainda dev render alguns frutos, e aqui dedico um pequeno espaço do meu blog para essa polêmica que resgata o velho dom do Stalinismo em fantasiar a vida desse grande revolucionário, que foi Trotsky!

Enfim, abaixo segue os dois textos, o do Miguel Urbano e o do Mario Maestri!


Apontamentos sobre Trotsky — O mito e a realidade
Miguel Urbano rodrigues

Transcorridas quase duas décadas sobre a desagregação da União Soviética, pouco se escreve e fala sobre Gorbatchov. Os grandes media internacionais quase esqueceram o político e o homem que guindaram a herói da humanidade quando contribuía decisivamente, através da perestroika, para a reimplantação do capitalismo na Rússia.
Paradoxalmente, Trotsky continua a ser um tema que fascina muitos intelectuais da burguesia, alguns progressistas, e dezenas de organizações trotskistas na Europa e sobretudo na América Latina.
Sobre o homem e a obra não foram nas últimas décadas publicados livros importantes que acrescentem algo de significante aos produzidos pelos seus biógrafos, nomeadamente a trilogia do Historiador polaco Isaac Deutscher.
Nem um só dos partidos e movimentos trotskistas conseguiu afirmar-se como força politica com influência real no rumo de qualquer país.
Porquê então a tenaz sobrevivência, não direi do trotskismo, mas do nome e de algumas teses do seu criador no debate de ideias contemporâneo? Isso não obstante ser hoje pouco frequente a reedição dos seus livros.
A contradição encaminha para uma conclusão: uma percentagem ponderável dos modernos trotskistas desconhece a obra teórica e a trajectória politica de Trotsky.
Cabe chamar a atenção para o facto de a maioria dos intelectuais burgueses das grandes universidades do Ocidente que assumem a defesa e a apologia da intervenção de Trotsky na História serem anticomunistas. O seu objectivo precípuo é combater a URSS e o que a herança da Revolução de Outubro significa para a humanidade. Trotsky e Stáline são utilizados por esse tipo de "sovietólogos" como instrumentos na tarefa de combater e desacreditar o comunismo.
Nos movimentos trotskistas confluem jovens com motivações e comportamentos sociais muito diferentes. À maioria ajusta-se a definição que Lenine deu a certos esquerdistas: "pequeno burgueses enraivecidos". Frustrados, expressam a sua recusa do capitalismo na adesão a projectos radicais de transformação rápida da história.
Quase todos, – como aconteceu aos líderes do Maio de 68 parisiense – voltam a integrar-se no sistema após uma breve militância pseudo-revolucionária.
A mitificação de Trotsky
As campanhas anti-Trotsky promovidas pelos partidos comunistas na época de Stáline produziram globalmente um efeito contrário ao visado. Facilitaram o aparecimento em muitos países de organizações trotskistas e criaram condições favoráveis à mitificação de Trotsky.
Intelectuais burgueses e exilados russos, muitos deles ex-comunistas, deram uma importante contribuição para criar e difundir a imagem de um Trotsky imaginário. Os grandes diários do Ocidente, do The New York Times ao Guardian, abriram as suas colunas a essas iniciativas. Compreenderam que a transformação de Trotsky no herói revolucionário puro, vítima da engrenagem trituradora de um sistema monstruoso, daria maior credibilidade às campanhas contra a União Soviética.
A glorificação de Trotsky é um fenómeno tão lamentável, por falsificar a História, como a diabolização da União Soviética, inseparável da visão da época de Stáline como um tempo de horrores.
Cabe aos epígonos de Stáline – repito – uma grande responsabilidade pelo êxito no Ocidente da tentativa de utilizar a vitimização de Trotsky como arma do anticomunismo.
A historiografia soviética não se limitou a negar a Trotsky um papel minimamente importante na preparação da Revolução de Outubro e na sua defesa. Nos Processos de Moscovo Trotsky é acusado em alguns depoimentos de agente de Hitler que teria levado a sua traição ao ponto de preparar com o III Reich nazi o desmembramento da jovem república soviética.
Esse tipo de calúnias é tão absurdo, como expressão de um ódio irracional, como o esforço realizado por escritores anticomunistas e alguns governos para criminalizarem o comunismo como sistema comparável ao fascismo. A falsificação das estatísticas foi levada tão longe que alguns autores acusam Stáline de ter exterminado ou enviado para campos siberianos mais de cem milhões de pessoas1. A atribuição do Nobel de Literatura a um escritor reaccionário tresloucado como Solzenitzyn (que se orgulhava de odiar a Revolução Francesa) traduziu bem a necessidade que a burguesia sentia no Ocidente de satanizar a União Soviética, negando a herança progressista e humanista da Revolução de Outubro.
É nesse contexto que se insere o reverso da medalha, isto é a reinvenção de Trotsky.
Duas obras do próprio Trotsky e a trilogia de Deutscher – o Profeta Armado, o Profeta Desarmado e o Profeta Banido – funcionaram também como estímulos na fabricação do mito2.
Trotsky, em "A Minha Vida"3, a sua autobiografia, não atribui grande significado às divergências entre ele e Lenine durante os anos que precederam a Revolução de Fevereiro de 17. E na sua "História da Revolução Russa"4 valoriza muito as convergências desde o início da Revolução de Outubro e são escassas as referencias a questões fundamentais em que assumiram posições diferentes, por vezes antagónicas. Somente nos ensaios editados sob o título de "A Revolução Permanente"5, ao responder a criticas de Karl Radek e Stáline, reconhece que Lenine o criticou por divergirem no tocante ao papel dos sindicatos e ao Gosplan, mas subestima a importância dessas discordâncias. Simultaneamente, ao identificar em Lenine o grande líder da Revolução e expressar profunda admiração pelo ideólogo, o estratego e o estadista, encaminha, com habilidade, o leitor para a conclusão de que, no tocante aos problemas fundamentais da construção de uma sociedade socialista na Rússia revolucionária, existiu entre ambos nos últimos anos da vida de Lenine uma confiança mútua e uma grande harmonia no trabalho.
Tal conclusão deforma a História.
Deutscher, que se assume como um admirador entusiástico de Trotsky e confessa odiar Stáline, projecta uma imagem distorcida do biografado. Não esconde as divergências dele com Lenine, mas, procurando ser objectivo no relato dos factos, esforça-se por persuadir os leitores de que, nos últimos meses da sua vida, pressentindo a proximidade da morte, Lenine via em Trotsky o membro do Politburo mais indicado para lhe suceder na chefia do Estado Soviético.
A conclusão carece de fundamento, é puramente subjectiva.
O próprio Deutscher sublinha que a velha guarda bolchevique, embora reconhecendo o talento de Trotsky como estadista, nunca viu nele um homem do Partido. O seu passado, como menchevique, não fora esquecido. O carácter de Trotsky, a sua vaidade, o estilo autoritário, a sua tendência para a crítica demolidora quando discordava de companheiros de luta inspiravam desconfiança e até rancor.
É significativo que logo após a morte de Lenine, Olminski, muito ligado a Stáline, tenha proposto a publicação de uma carta datada de 1912, encontrada nos arquivos da Policia Czarista, na qual Trotsky, dirigindo-se a Tchkeidzé, um destacado contra-revolucionário, descrevia Lenine como "um intrigante" um "desorganizador" e um "explorador do atraso russo"6.
A sugestão não foi então atendida, mas na campanha contra Trotsky a recordação do seu passado anti-bolchevique tornou-se permanente e desempenhou um papel importante.
A carta de Lenine ao Congresso
Na fase final da sua doença, Lenine aproximou-se de Trotsky, mas não por ter reformulado a opinião que formara sobre ele. Quando Stáline na primavera de 1922 foi eleito secretário-geral do jovem Partido Comunista da União Soviética, Lenine, para lhe contrabalançar a influência, propôs a nomeação de quatro vice-presidentes para o Conselho dos Comissários do Povo, ou seja o governo. Trotsky foi um deles, Rikov, Tsurupa e Kamenev os outros.
Trotsky recusou. A simples ideia de partilhar o cargo de vice de Lenine com três camaradas – dois dos quais já o exerciam – feriu o seu desmesurado orgulho. Lenine sentiu decepção, mas por duas vezes insistiu sem êxito. Quando ele recusou novamente, Stáline levou o Politburo a aprovar, em Setembro de 22, uma resolução censurando Trotsky por indiferença perante o cumprimento do dever.
Lenine, defensor tenaz do papel dirigente do PCUS, era partidário de uma separação de tarefas entre o Partido e o Estado para evitar problemas graves que principiavam a esboçar-se.
Inválido, sentindo a proximidade da morte, ditou entre 23 e 31 de Dezembro de 1922 uma Carta ao XIII Congresso do Partido Comunista. Nessa importante mensagem transmitiu opiniões que iriam suscitar muita polémica, ao esboçar o perfil dos cinco camaradas que, com ele integravam o Politburo: Zinoviev, Kamenev, Stáline, Bukharine e Tomski (Kalinine e Piatakov eram suplentes e Molotov assessor).
Esse explosivo documento foi lido aos delegados ao Congresso, realizado em Maio de 1924, pela companheira de Lenine, Krupskaya, quatro meses após a sua morte. Mas, por iniciativa de Stáline aprovada pelo Politburo, a Carta não foi publicada. O povo soviético somente tomou conhecimento do seu conteúdo após o XX Congresso.
Lenine expressava muita preocupação pelo tenso relacionamento entre Stáline e Trotsky por identificar nele um perigo para a estabilidade do partido.
"O camarada Stáline – afirmava – tendo-se tornado secretário-geral, concentrou nas suas mãos um poder imenso, e não estou certo de que saiba sempre utilizar este poder com suficiente prudência. Por outro lado, o camarada Trotsky, como o demonstrou já a sua luta contra o CC a propósito da questão do Comissariado do Povo das Vias de Comunicação, não se distingue apenas pela sua destacada capacidade. Pessoalmente é talvez o homem mais capaz do actual CC, mas peca por excessiva confiança em si próprio e deixa-se arrastar excessivamente pelo aspecto puramente administrativo das coisas"7.
Numa adenda à carta de 24 de Dezembro, datada de 4 de Janeiro de 1923, Lenine lamenta que Stáline seja demasiado rude e acrescenta: "este defeito, plenamente tolerável no nosso meio e nas relações entre nós, comunistas, torna-se intolerável no cargo de secretário-geral. Por isso proponho aos camaradas que pensem na forma de transferir deste lugar e de nomear para este lugar outro homem que em todos os outros aspectos se diferencie do camarada Stáline apenas por uma vantagem, a saber: que seja mais tolerante, mais leal, mais cortês e mais atento para com os camaradas, menos caprichoso, etc."
Mas não sugeriu qualquer nome para a substituição de Stáline.
Quando Trotsky conversou com ele pela última vez, Lenine, cuja doença evoluiu rapidamente para o desfecho que todos temiam, pediu-lhe que colaborasse numa acção conjunta contra a burocratização do Partido e do Estado e de condenação da política repressiva que Stáline e Ordjonikidze tinham executado na Geórgia.
Mas são do domínio da fantasia as afirmações que atribuem a Lenine o desejo de ver Trotsky à frente do Partido ou do Estado.
Tal ideia – contra o que sugere Deutscher – nunca lhe terá aflorado o pensamento. Via nele o mais dotado intelectualmente dos líderes do Partido, mas incapaz de controlar "uma autoconfiança excessiva".
O Choque humano e ideológico
Durante muitos anos, desde o início do século até à Revolução de Fevereiro, Lenine criticou Trotsky com dureza e este retribuiu sempre.
Lenine, admirando o seu talento, identificava nele um oportunista e um conciliador. A sua relação com os mencheviques, partido a que pertenceu, inspirava-lhe profunda desconfiança. Não lhe apreciava o carácter, marcado por uma impulsividade e uma arrogância que o levavam a assumir posições imprevisíveis e com frequência contraditórias em bruscas reviravoltas.
A troca de acusações exprimiu-se em determinados períodos por uma veemência verbal pouco comum.
Após a expulsão de Trotsky do Partido, essas opiniões de Lenine, emitidas em reuniões do Partido Bolchevique, em documentos, e cartas pessoais, foram tornadas publicas na URSS e amplamente divulgadas em países estrangeiros.
Trotsky, como já recordei, tenta nos livros publicados no exílio ocultar ou desvalorizar o significado das suas divergências com Lenine, pondo toda a ênfase na colaboração entre ambos a partir da Revolução de Fevereiro de 1917.
Os seus biógrafos afirmam que após a Conferência de Zimmerwald, que condenou a guerra imperialista, as suas posições quase coincidiram com as assumidas pela fracção bolchevique do Partido Operário Social-Democrata da Rússia-POSDR. Não é essa a opinião de Lenine. Numa carta a Boris Souvarine, datada de Dezembro de 1916, Lenine lembra que Trotsky acusara os bolcheviques de "divisionistas". "Em Zimmerwald – sublinha – recusou incorporar-se na esquerda local e juntamente com a camarada Roland Horst (uma holandesa) representou o "centro"8.
Trotsky, vindo do Canadá, regressou à Rússia antes de Lenine. Numa carta à sua intima amiga Ines Armand, datada de 19 de Fevereiro de 1917, Vladimir Ilitch incluiu o seguinte desabafo: "Chegou Trotsky e este canalha entendeu-se imediatamente com a ala direita do “Novi Mir” contra os zimmerwaldistas de esquerda. Tal como lhe digo! Assim é Trotsky! Sempre fiel a si mesmo, revolve-se, trafulha, finge de esquerdista e ajuda a direita quando pode."9
Escritores trotskistas como Alfred Rosmer e Rosenthal omitem que meses depois da sua adesão ao Partido Bolchevique, quando já exercia funções de grande responsabilidade, como dirigente, Trotsky divergiu de Lenine em questões de grande importância em momentos cruciais.
A participação de Trotsky em Brest Litowski continua a ser tema polémico. Então Comissário do Povo para as Relações Exteriores, chefiou a delegação russa nas negociações de paz com os alemães.
Sobre o tema, dirigindo-se ao VII Congresso Extraordinário do Partido Bolchevique da Rússia, Lenine declarou:
"Devo referir-me agora à posição do camarada Trotsky. Na sua actuação devemos distinguir duas fases: quando iniciou as negociações de Brest, utilizando-as excelentemente para a agitação, todos estivemos de acordo com ele. Trotsky citou parte de uma conversa comigo, mas devo acrescentar que concordamos manter-nos firmes até ao ultimato dos alemães, mas cederíamos após ele. Os alemães intrujaram-nos porque de sete dias roubaram-nos cinco. A táctica de Trotsky foi correcta enquanto se destinou a ganhar tempo; tornou-se equívoca quando se declarou o fim do estado de guerra, mas não se assinou a paz. Eu tinha proposto com toda a clareza que se assinasse a paz de Brest".10
A transcrição (parte de uma intervenção extensa) é esclarecedora porque a posição assumida por Trotsky ("nem paz nem guerra"), ignorando as instruções de Lenine, levou os alemães a romper a trégua e desencadear uma ofensiva de consequências desastrosas, ocupando enormes extensões do país. Quando o Tratado de Paz foi finalmente assinado, as condições impostas foram muito mais severas do que as inicialmente apresentadas pelo Império Alemão.
Lenine criticou então duramente Trotsky. Mas não era rancoroso.
Transferiu-o do Comissariado das Relações Exteriores para o das Questões Militares. Conhecia as qualidades de organizador de Trotsky e este na sua nova tarefa teve um papel fundamental na organização do Exército Vermelho, na condução vitoriosa da Guerra Civil e na derrota da intervenção militar das potências da Entente.
Mas logo em 1920, Trotsky e Lenine divergiram profundamente durante o debate sobre os Sindicatos e a sua função na Rússia soviética, e no tocante ao monopólio do Comércio. Trotsky publicara um folheto intitulado "O papel e as tarefas dos sindicatos". Lenine submeteu as teses por ele defendidas e a posição que sobre o assunto assumira no Comité Central a uma critica duríssima [9] . Manifestou espanto perante "quantidade de erros teóricos e de evidentes inexactidões", estranhando que no âmbito de uma discussão tão importante no partido Trotsky tivesse produzido "algo tão lamentável em vez de uma exposição cuidadosamente meditada". Nessa critica alertou para divergências de fundo de ambos quanto aos "métodos de abordar as massas, de ganhar as massas, de nos vincularmos às massas".
Concluindo, Lenine, que criticou simultaneamente, com idêntica veemência as posições assumidas por Bukharine, afirmou: "As teses do camarada Trotsky são politicamente prejudiciais. A base da sua politica é a pressão burocrática sobre os sindicatos. Estou certo de que o Congresso do nosso Partido a condenará e repudiará"11.
Assim aconteceu.
Julgo útil chamar a atenção para o facto de que Lenine manteve a sua confiança em Trotsky como principal responsável pelas operações em que o Exército Vermelho estava então envolvido em múltiplas frentes.
A contradição aparente facilita a compreensão do carácter profundamente democrático da ditadura do proletariado na Rússia soviética nos anos posteriores à Revolução de Outubro.
As Revoluções Russas, a partir de 1905, forjaram gerações de revolucionários profissionais com um talento, uma criatividade, uma coragem e uma tenacidade que assombraram os Historiadores. Dificilmente se encontra um precedente para essas gerações que, aliás, tiveram continuidade na que se bateu contra o Reich nazi e o destruiu, salvando a humanidade de uma tragédia.
O estabelecimento de consensos na época revolucionária foi sempre difícil. Sem o imenso prestigio e o génio de Lenine – é a palavra adequada para o definir – eles não teriam sido possíveis, como ficou transparente nas jornadas de Brest Litowski.
Deutscher, um trotskista assumido, recorda que a estabilidade no Politburo e no CC nascia da "autoridade incontestável de Lenine e da sua capacidade de persuasão e habilidade táctica que, em geral, lhe permitiam conseguir a maioria de votos para as propostas que apresentava à medida que surgiam os problemas".12
Tinha o dom raríssimo, quando transmitia um projecto polémico a camaradas, de os levar a admitir que haviam sido eles e não ele, Lenine, que o haviam concebido. Nos cinco anos gloriosos posteriores à vitória da Revolução, Lenine foi colocado algumas vezes em minoria, perdendo na discussão de questões importantes. Submeteu-se nessas ocasiões à maioria. Assim funcionava então o centralismo democrático. Mas quase sempre os seus camaradas acabavam por reconhecer que ele estava certo.
Chamo a atenção para a importância da excepcionalidade de Lenine porque ela lhe permitiu uma colaboração harmoniosa com um feixe de revolucionários tão heterogéneo como o da sua época. Ele conseguiu que formassem uma equipa – não os poupando a severas criticas quando necessário – dirigentes como Stáline, Trotsky, Bukharine, Kamenev, Zinoviev, Preobrazhensky, Alexandra Kolontai, Dzerzhinski, Rikov, Piatakov, Tomski, Sverdlov, Lunacharski, Molotov, Kalinine, Vorochilov, Budiony, Kirov, Rakovski, Rabkrin, etc.
Essa unidade na acção e no pensamento, mesmo entre os membros da velha guarda bolchevique, desapareceu quando Lenine morreu. Sem ele, era impossível.


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Não se pode escrever algo sobre Trotsky sem citar Stáline. Incluo-me entre os comunistas, poucos, que recusam simultaneamente a glorificação ou a satanizarão de ambos.
A burguesia persiste em projectar de Stáline somente a imagem negativa, porque ao apresentá-lo como um ditador satânico facilita a criminalização da União Soviética e do comunismo como ideologia monstruosa.
Terei sido dos primeiros comunistas portugueses a criticar o dogmatismo subjectivista de Stáline num livro apreendido pela ditadura brasileira em 1968 13. Mas a minha discordância da sua postura perante o marxismo e a condenação dos seus métodos e crimes não me impedem de reconhecer que Stáline foi um revolucionário cuja contribuição para a transição do capitalismo para o socialismo na União Soviética foi decisiva. Sem a sua acção à frente do Partido e do Estado, a URSS não teria sobrevivido à agressão bárbara do Reich nazi, sem ela a pátria de Lenine não se teria transformado em poucas décadas na segunda potencia mundial, impulsionando um internacionalismo que apressou a descolonização, incentivou e defendeu revoluções no Terceiro Mundo e estimulou poderosamente a luta dos trabalhadores nos países desenvolvidos do Ocidente.
No lado oposto do quadrante, recuso também a mitificação de Trotsky.
A sua transformação em herói revolucionário, tal como a sua satanizarão como contra-revolucionário, deformam a História.
São caluniosas as acusações (nomeadamente nos Processos de Moscovo) que o apresentam como cúmplice dos projectos de Hitler para destruição da URSS.
Dotado de um talento incomum, brilhante escritor e polemista, distinguiu-se desde a juventude por uma oratória que empolgava as massas e o levou aos 25 anos à presidência do Soviete de Petrogrado durante a Revolução de 1905.
A sua adesão ao Partido Bolchevique, pouco antes da Revolução de Outubro, assinalou o início de uma viragem na sua trajectória politica e humana. Foi com o pleno apoio de Lenine que nas jornadas que precederam a insurreição de Outubro voltou a presidir ao Soviete de Petrogrado e posteriormente cumpriu tarefas da maior responsabilidade como Comissário para as Relações Exteriores e Comissário para as Questões Militares, missão que na prática fez dele o chefe do Exército Vermelho.
Mas a tentativa dos seus epígonos e de Historiadores burgueses de o guindar a "companheiro de Lenine", colocando-o ao nível do líder da Revolução, falseia grosseiramente a História.
Trotsky não foi nem o revolucionário puro que os trotskistas veneram como herói da humanidade, nem o traidor fabricado por Stáline.
Mas com o rodar dos anos o mito nascido da sua vitimização tomou forma, resistiu e sobrevive.
Enquanto Gorbatchov, que abriu caminho como secretário-geral do PCUS à destruição da URRS, tende – repito – a ser esquecido, o mito Trotsky permanece. Poucos lêem hoje os livros em que condensou o seu pensamento e escreve sobre a sua participação na História. Mas a atitude dos milhares de pessoas que anualmente visitam a casa de Coyoacan, na capital do México, onde viveu e foi assassinado, ilumina bem o enraizamento desse mito.
Não é fácil compreender o fenómeno, porque o trotskismo, como ideologia e instrumento de acção revolucionária, fracassou, não correspondendo minimamente às aspirações do seu criador14.
Admito que Trotsky não se reveria em qualquer das dezenas de partidos trotskistas que hoje em muitos países o tomam por inspirador e guia.
Serpa e Vila Nova de Gaia, Novembro de 2008
NOTAS:
1 Jean Salem, Lenine e a Revoluçao, Ed. Avante, Lisboa, 2007
2 Isaac Deutscher, Trotsky, Ed. Civlizaçao Brasileira,1968, São Paulo.
3 Leon Trotsky, Histoire de la Revolution Russe, Ed Seuil, Paris, 1950.
4 Leon Trotsky, My Life, Ed. Penguin, London, 1988
5 Leon Trotsky, La Revolución Permanente, Ed Yunque, 2ª edición, Buenos Aires, 1977
6 Isaac Deutscher, O Profeta Desarmado, Obra citada, pág 44
7 Existem traduções em diferentes línguas da Carta de Lenine ao XIII Congresso do PCUS. As diferenças entre os textos que conheço são formais, mínimas. Utilizei nas citações feitas, a tradução de Edições Avante, 1979.
8 V.I.Lenine, Textos extraídos das Obras Completas de Lenine, Ed. Estampa, Lisboa 1977, pág 260
9 Obra citada, pág 269
10 Obra citada, pág 270/271
11 Obra citada, pág 300
12 Isaac Deutscher, Obra citada, pág 88
13 Miguel Urbano Rodrigues, Opções da Revolução na América Latina, Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1968
14 Ver Leon Trotsky, Revolução e Contra-revolução, Ed. Laemmert, Rio de Janeiro, 1968. Neste livro, que enfeixa ensaios redigidos em 1930 e1931, em Prinkipo, na Turquia, onde estava exilado, Trotsky, numa atitude de esquerdismo profético, identifica na crise iniciada em 1929 o prólogo de uma era de revoluções cujo desfecho seria o socialismo. Transcrevo dessa obra algumas passagens expressivas de uma teimosa fidelidade à sua concepção da "revolução permanente": a) "É muito provável que o desenvolvimento progressivo da revolução espanhola dure por um período de tempo mais ou menos longo. E, por aí, o processo histórico abre, de algum modo, um novo crédito ao comunismo espanhol". (pág.20) b) "A situação na Inglaterra pode também não, e não sem justas razões, ser considerada como pré-revolucionária, se se admitir com rigor, que entre uma situação pré-revolucionária e uma situação imediatamente revolucionária pode mediar um prazo de vários anos, período em que se produzirão fluxos e refluxos". (pág 20) c) "É inevitável e relativamente próxima uma mudança na consciência revolucionária do proletariado americano, a qual já não será mais “um fogo de palha” que se apaga facilmente, mas o inicio de um verdadeiro e grande incêndio revolucionário. (pág 24) d) A aventura iniciada pelo czar na Manchúria provocou a guerra russo-japonesa; a guerra provocou a Revolução de 1905. A aventura japonesa actual na Manchúria pode acarretar uma revolução no Japão. (pág 24) A evolução da História nesses quatro países desmentiu quase imediatamente as previsões de Trotsky.
Este artigo está no http://resistir.info/

Por que o espectro de Trotsky segue rondando o mundo? ─ Uma resposta a Miguel Urbano Rodrigues
Por Mário Maestri

Em 21 de agosto de 1940, quando Trotsky morria assassinado, o movimento que organizara pela revolução mundial e contra a burocracia stalinista bordejava o imenso buraco negro que seus opositores lhe haviam aberto. Durante a Segunda Guerra e nos anos que a sucederam, as já desmilingüidas fileiras da apenas-fundada 4ª Internacional foram quase varridas da Europa pela repressão burguesa e stalinista.
A contribuição da população soviética e do operariado comunista europeu na vitória sobre o fascismo cobriram de prestígio a direção stalinista. Em março de 1953, quando Stálin morreu, as forças contra as quais Trotsky combatera viviam verdadeiro apogeu. Multidões de populares desfilaram diante do corpo do “Pai dos Povos” enquanto jorravam elogios mundiais de acólitos. As direções stalinistas dirigiam a URSS, a China, o Leste Europeu e milhões de trabalhadores no coração e na periferia do capitalismo.
Nesse então, os poucos milhares de militantes trotskistas que continuavam denunciando políticas que apontavam como suicidarias para os trabalhadores seguiriam sendo caluniados, reprimidos, assassinados. A construção de movimento revolucionário em momento de expansão do capitalismo, sem raízes orgânicas com o grande operariado, sob o tacão do prestígio stalinista, sem dirigentes fogueados nos confrontos da primeira metade do século mostrava-se missão quase impossível.
O humilde túmulo com a foice, o martelo e o nome Trotsky, no jardim da pequena morada transformada em bunker na periferia da capital mexicana, era metáfora da agonia que vivia uma memória e um ideário que nas décadas seguintes interessariam talvez apenas a historiadores. Uma pregação que parecia destinada ao culto de grupinhos de sectários atraídos pelo calor decrescente obtido na adoração passiva de ideal que refulgira no passado.
O Homem Põe, a História Dispõe
Às portas dos setenta anos da morte de Trotsky, a história arranjou-se para que seu ideário galvanize centenas de milhares de ativistas sociais, jovens e adultos, estudantes, intelectuais e trabalhadores, enquanto que o representante das práticas que combateu, desacredito, encontre apenas raros defensores oblíquos, disfarçados e envergonhados. Singular inversão que se materializou em menos de três dramáticas décadas. Na França, as organizações trotskistas já superam o antigo poderoso PCF, sob o perigo da extinção. Em 2007, seu candidato à presidência obteve 1,93% dos votos. Na Itália, militantes inspirados no ideário de Trotsky defendem em crescente número e destaque a herança liquidada por um PCI transformado em braço do capitalismo e imperialismo.
Em artigo recente, “Apontamentos sobre Trotsky – O mito e a realidade”, Miguel Urbano Rodrigues registra a perplexidade da geração de comunistas educada sob a pesada sombra do PC Russo diante da incrivelmente “tenaz sobrevivência [...] do nome e de algumas teses” de Trotsky “no debate de idéias contemporâneo”. Miguel Urbano é velho e brilhante intelectual do pequeno e combativo Partido Comunista Português que, com reais vínculos com a diminuta classe operária lusitana, resistiu com brio à degringolada colaboracionista eurocomunista, sem realizar entretanto a catarse de heranças e práticas que contribuem para mantê-lo no isolamento relativo. Fundado em 1921, nas eleições legislativas de 2005, o PCP obteve 7,60% dos sufrágios.
O ensaio de Miguel Urbano de explicação do crescente prestígio de Trotsky e multiplicação de seus seguidores repete a tradicional pragmática stalinista, apenas depurada das suas mais esdrúxulas excrescências. A apologia de Trotsky seria obra sobretudo de “intelectuais burgueses” interessados em “combater a URSS” e a “herança da Revolução de Outubro”. O combate que lhe deu o stalinismo contribuiria também a esse reconhecimento! Como pouco se lê, pouco se reedita, pouco se publica sobre Trotsky, seu prestígio seria simples mitificação, na qual incorreriam sobretudo trotskistas em sua “maioria” “pequeno-burgueses enraivecidos” que, logo “voltam a integrar-se no sistema após uma breve militância pseudo-revolucionária”.
Se a calúnia e a repressão aos trotskistas resultassem em difusão e apoio, a Rússia seria hoje a pátria da 4ª Internacional, tamanha a sanha stalinista contra a memória do construtor do Exército Vermelho e seus seguidores na antiga URSS! Apenas no Brasil, onde são escassas as edições marxistas, entre outras obras, foram recentemente reeditadas a biografia de Isaac Deutscher [Civilização Brasileira], a Revolução permanente [Expressão Popular], a História da revolução russa [Sandermann], Literatura & Revolução [Zahar]. Movimento editorial substancialmente ainda mais dinâmico em países como a França, Itália, Espanha, Alemanha, Argentina.
A afirmação de Miguel Urbano que sobre “o homem e a [sua] obra não foram nas últimas décadas publicados livros importantes que acrescentem algo de significante aos produzidos pelos seus biógrafos, nomeadamente a trilogia do historiador” Isaac Deutscher” [1907-1967], deve-se à ignorância do jornalista que, sintomaticamente, constrói seu artigo sobretudo apoiado na obra do historiador polonês, dos anos 1950-60, sem qualquer referência à monumental biografia do historiador marxista Pierre Broué [1926-2005], de 1988, autor igualmente de, entre outros, Communistes contre Staline : Massacre d'une génération, de 2003. Esta afirmação de Miguel Urbano, como a sobre a escassa reedição de obras de Trotsky, devem-se certamente a uma espécie de cegueira seletiva.
Pro Outro Lado da Trincheira
Não há dúvidas que nos últimos anos alguns militantes de destaque mudaram-se de mala e cuia para o outro lado da trincheira, após militâncias não tão breves em organizações trotskistas. Talvez o caso mais célebre seja o ex-primeiro ministro francês Lionel Jospain, antigo militante lambertista infiltrado no Partido Socialista. No Brasil temos também algumas dezenas de semelhantes trânsfugas, que pularam a cerca para se entregarem aos doces prazeres da gestão do poder, participando gostosamente nos governos neoliberais de Lula da Silva, com destaque para Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda, e Luís Gushiken, também lambertistas.
Igual trajetória percorreu a imensa maioria dos dirigentes dos partidos comunistas burocratizados do Oriente e do Ocidente, que abandonou a trincheira momentos antes e sobretudo durante a maré contra-revolucionária vitoriosa dos anos 1980. Porém, nas filas stalinistas, a traição-deserção não foi fenômeno individual, mas movimento social de centenas de milhares de burocratas russos, ucranianos, poloneses, húngaros, iugoslavos, chineses, etc., que participaram ativamente do processo de restauração capitalistas e canibalização das riquezas sociais, passando a constituir um dos eixos centrais da nova classe proprietária.
Nos partidos comunistas ocidentais não foi diferente. Apenas um exemplo excelente. Massimo D’Alema, o jovem ex-dirigente do PCI, participou à cabeça do governo italiano do ataque militar imperialista ao pouco que sobrava da antiga federação iugoslava. Hoje com pouco mais de oitenta anos, Miguel Urbano certamente conheceu e conviveu com boa parte dessa direção vira-casaca, à qual negou-se a seguir, perseverando em seus compromissos.
Sempre segundo o articulista, o prestígio de Trotsky deveria-se sobretudo à mitificação sobre seu papel na Revolução Russa empreendida por ele mesmo e por autores e historiadores sobretudo trotskistas. “Duas obras do próprio Trotsky e a trilogia de Deutscher [...] funcionaram também como estímulos na fabricação do mito.” Para comprovar sua tese, dedica a maior parte de seu artigo à demonstração de que Trotsky e Lênin divergiram fortemente antes de 1917 e diversas vezes após a Revolução, com destaque para a Paz de Brest-Litovski e as polêmicas sobre os sindicatos e a Gosplan [Comitê Estatal de Planejamento].
Para o jornalista português, seria igualmente despropositada não apenas naquela literatura a apresentação de Lênin e Trotsky como os dois principais dirigentes revolucionários russos. “[...] a tentativa dos seus epígonos e de historiadores burgueses de o guindar a ‘companheiro de Lênin’, colocando-o ao nível do líder da Revolução, falseia grosseiramente a história.” Miguel Urbano denuncia portanto a “idealização de Trotsky” [revolucionário de segunda linha, em relação a Lênin], definindo-o, direta ou indiretamente, como homem “vaidoso”, “arrogante”, “orgulhoso”, “autoritário” e, segundo Lênin, “canalha”, “oportunista” e “conciliador”.
Miguel Urbano impugna a “mitificação” de Trotsky e denuncia a “diabolização” de Stálin, para ele, dirigente revolucionário de alto coturno, ao qual literalmente canoniza: “[...] revolucionário cuja contribuição para a transição do capitalismo para o socialismo na União Soviética foi decisiva. Sem a sua ação à frente do Partido e do Estado, a URSS não teria sobrevivido à agressão bárbara do Reich nazi, sem ela a pátria de Lênin não se teria transformado em poucas décadas na segunda potencia mundial, impulsionando um internacionalismo que apressou a descolonização, incentivou e defendeu revoluções no Terceiro Mundo e estimulou poderosamente a luta dos trabalhadores nos países desenvolvidos do Ocidente.”
História e Luta de Classes
A compreensão das razões pelas quais o espólio de Trotsky segue galvanizando os que combatem a opressão capitalista não se encontra no exame pontilhista de sua trajetória antes e durante a Revolução Russa, tendo como o padrão referencial absoluto um Lênin idealizado e mitificado. Lênin e Trotsky, os dois maiores dirigentes daqueles embates, divergiram forte e duramente em muitíssimas ocasiões, com destaque para os anos anteriores à Revolução. As desqualificações que voaram de um lado ao outro, entre os dois, e dos dois com boa parte dos dirigentes políticos de então, registram a dureza da discussão e vertente cultural não muito sadia da época. O prosseguimento da história terminou comprovando quem tinha razão e quem se enganara nos diversos embates e que o denominador comum entre ambos foi sempre a luta intransigente em defesa dos oprimidos.
Lênin destacou-se como o principal teórico do partido revolucionário, destacamento político e orgânico das classes trabalhadoras, em geral, e de seus segmentos industriais avançados, em especial, construído para o assalto ao poder burguês e consolidação da ordem socialista. Sua contribuição sobre o centralismo democrático e a ditadura do proletariado são fundamentais à sociologia revolucionária. Lênin foi sempre sobretudo homem de partido e de organização. A sua compreensão tardia de que apenas a revolução socialista consolidaria as conquistas democráticas na Rússia tzarista ensejou que boa parte de sua publicística anterior a 1917 seja de difícil leitura e compreensão, exigindo comumente uma complexa contextualização histórica.
A história demonstrou que Trotsky não avaliou corretamente a importância do partido no assalto ao poder. Sua convergência com os bolcheviques constituiu também autocrítica nesse relativo. A seguir, abraçaria explicitamente as contribuições de Lênin quanto à organização partidária. Sua incompreensão parece ter nascido igualmente da forma de entender a sociedade. Na sua ação e interpretação dos fenômenos sociais, enfatizou sempre o movimento das massas trabalhadoras. Para ele, a revolução foi sempre processo de construção das condições objetivas e subjetivos de poder no seio das massas exploradas. Visão que contribuiu poderosamente para sua definição precoce e pioneira do caráter socialista da revolução russa.
Na mais pura tradição marxiana, Trotsky não via saúde social e política fora da materialidade das classes trabalhadoras em movimento. A visão leninista da revolução abraçava esse princípio, sem a mesma ênfase e a mesma sensibilidade. Porém, se a visão leninista da revolução enfatizava a organização partidária, a própria esquerda stalinista obliterou fortemente o caráter determinante do movimento vivo dos trabalhadores e a necessidade de sua expressão plena nos aparatos partidários e jamais substituição pelos mesmos. Na interpretação de Miguel Urbano não há aceno aos fluxos e refluxos da revolução mundial no século 20, que enquadraram-determinaram os fatos que analisa.
O Princípio e o Fim
Olvidando o movimento vivo das classes como o alfa & ômega da história, Miguel Urbano eleva Lênin – e com ele o partido – à figura de perfeição lapidar, transformando-o em verdadeiro deus ex-machina da história. Para ele, Vladimir Ulich era “genial”, “excepcional”, “habilidoso”, a tal ponto possuidor das qualidades revolucionárias que seria impossível pensar a unidade partidária sem ele. “Essa unidade na ação e no pensamento, mesmo entre os membros da velha guarda bolchevique, desapareceu quando Lênin morreu. Sem ele, era impossível.” Proposta de inexorável divisão dos bolcheviques, pois Lênin, ser humano, cedo ou tarde, morreria. Substituição dos trabalhadores na construção da história, por protagonistas magníficos, registrada já na proposta de que sem Stálin a “URSS não teria sobrevivido à agressão” nazista e se transformado “em poucas décadas na segunda potencia mundial”.
Trotsky foi dirigente revolucionário de destaque, como Lênin, sendo até a conclusão da revolução de 1917 mais conhecido do que o último no exterior. Não foi por azares da sorte que presidiu o soviet de Petrogrado, na Revolução de 1905 e de 1917. Apesar dos ataques incessantes stalinistas, sua posição referencial deve-se também a outros fenômenos, entre eles, à sua indiscutível habilidade como teórico, orador e escritor, que lhe permitiu socializar maciçamente, sob a forma de obras teóricas e históricas magistrais, a memória da Revolução Russa. A excelência de seu 1905: balanço e perspectivas, escrito inicialmente em 1906, quando tinha 26 anos, registrava já as qualidades que lhe permitiram produzir trabalhos da dimensão de A história da Revolução Russa [1930-32], obra referencial sobre 1917, na tradição das monumentais histórias da Revolução Francesa de Jules Michelet [1798-1874] e Kropotkine [1842-1921]. Devido a sua morte prematura e características individuais, Lênin não deixou obras semelhante, capazes de serem lidas à margem de esforço militante ou acadêmico.
A atualidade de León Trotsky deveu-se sobretudo à sua compreensão precoce dos perigos e das raízes sociais da burocracia na URSS, vetor da expropriação da direção política da URSS aos trabalhadores. Realidade intuída tardiamente por Lênin, nos meses e semanas anteriores ao seu falecimento. A carta de Lênin de dezembro de 1922 é incorretamente apresentada como “testamento”, pois ele jamais deixou documento de tal caráter, ao possivelmente não acreditar-se tão próximo do fim. Seu rompimento final com Stálin deu-se devido ao modo inaceitável com que tratara Natália Krupskaya [1869-1939], importante dirigente bolchevique e sua esposa. Lênin possivelmente acreditava que continuaria ainda por algum tempo arbitrando as fricções no partido, das quais não avaliou plenamente a gravidade e o sentido social.
Grande parte da produção teórica de Trotsky deu-se no contexto do combate à burocratização da URSS, nos momentos e sobretudo após a morte de Lênin. É dolorosa a leitura atual do ensaio Novo Curso, de 1923, devido à sua extrema lucidez sobre as raízes e os malefícios da perda da direção da URSS pelo proletariado, deslocado pelo aparato burocrático. Fenômeno que passou a exigir revolução política que devolvesse o poder aos trabalhadores em Estado em que a propriedade já fora expropriada. Um ensaio que ampliava a visão de Lênin do partido, ao reafirmar que sua essência dependia da capacidade de organizar e expressar as grandes massas trabalhadoras em geral e o moderno proletariado industrial em especial. Entre outros trabalhos, a crítica de Trotsky à burocratização da URSS foi ampliada em A revolução traída, de 1935, reeditada em português, em 2008, pela Centauro, que acaba de publicar igualmente A revolução desfigurada.
A Cola da Burguesia
A longa pregação sobre a necessária revolução social no Ocidente e política no Oriente constitui certamente a grande razão do crescente renascimento do interesse sobre Trotsky, quando da dolorosa concretização de seus terríveis prognósticos sobre a destruição dos Estados de economia nacionalizada e planejada, enfraquecidos pela ditadura de burocracias parasitárias. Devido à atualidade desse ideário, a burocracia soviética da era Gorbachiov reabilitou praticamente todos os bolcheviques perseguidos e assassinados pela direção stalinista, à exceção de León Trotsky e seus mais próximos seguidores, pois seguiam apontando para a necessidade da devolução plena do poder aos órgãos soviéticos, como única forma de barrar o caminho à vitória da contra-revolução e ao restabelecimento do capitalismo.
Uma terceira grande razão da atualidade de Trotsky foi sua mobilização permanente pela independência do mundo operário; sua denúncia da submissão dos trabalhadores aos setores ditos progressistas da burguesia [frente popular]; sua oposição visceral à proposta de superação gradual da ordem burguesa sem a destruição de seu Estado. Políticas transformadas em práticas oficiais dos partidos comunistas, devido às necessidades diplomáticas egoístas e imediatistas da direção soviética burocratizada. Propostas que ensejaram derrotas históricas ao movimento revolucionário na Alemanha, França, Espanha, Itália, Brasil, etc. e, nas últimas décadas, a dissolução e metamorfose dos partidos comunistas em agentes do grande capital e do imperialismo. Uma pregação e um ideário plenamente vigentes nos atuais e difíceis dias que vivemos.
A recuperação do stalinismo e de Stálin realizada por Miguel Urbano sequer necessita resposta. O literal massacre físico de praticamente toda a geração bolchevique dirigente de 1917, com destaque para o Comitê Central de Lênin; o descrédito em que lançou a idéia do socialismo e do comunismo; o descalabro a que a URSS foi exposta, no início da II Guerra, pela purga de dezenas de milhares oficiais soviéticos e confiança depositada na paz pactuada o nazismo; os malefícios da coletivização forçada dos campos; a traição à revolução espanhola, balcânica, européia, etc.; a redução do movimento comunista a simples cola das burguesias ditas democráticas; a expropriação do poder aos trabalhadores nos países operários, etc. foram políticas que levaram à destruição das conquistas de 1917, quando o dinamismo da nacionalização e planejamento da produção não conseguiu mais se sobrepor ao peso do parasitismo nacional-burocrático, como já sugerira Trotsky desde 1923!
O trotskismo constitui apenas a última extensão orgânica por um grande teórico e dirigente revolucionário dos ensinamentos acumulado na primeira metade do século 20. Nesse sentido, o ideário de León Trotsky constitui essencialmente uma valiosa ampliação das idéias e lutas de Marx, Engels, Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht, Lênin, Gramsci, etc., em uma nova e difícil conjuntura histórica. Sobretudo com a crise e dissolução das propostas políticas stalinistas, maoístas, titoístas, foquistas, torna-se de certo modo desnecessário o qualificativo trotskista, inventado originalmente pelos stalinistas, ao constituir um certo entrave à necessária reunificação dos comunistas revolucionários em um movimento mundial pela reconstrução da sociedade centrada nos valores, práticas e ações revolucionárias e democráticas do mundo do trabalho.

Mário Maestri, 60, é historiador.
Consciencia.net - www.consciencia.net - Dezembro 25, 2008RODRIGUES, Miguel Urbano. “Apontamentos sobre Trotsky – O mito e a realidade”. 11/2008. http://resistir.info/mur/apontamentos_trotsky.html

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